top of page

Habitar a cidade: experiência, arte e subjetivação nas ruas de Vitória-ES
RAMOS, G. T; FILHO, A. C. Q. Habitar a cidade: experiência, arte e subjetivação nas ruas de Vitória-ES. Belo Horizonte: Encontro Nacional dos Geógrafos, 2012.

Gabriel T. Ramos
Antônio C. Q. Filho

Dos espaços para para passar​

Não se sobra espaço para passar. Os pés fogem da correria, mas precisam correr para fugir. Fazemos parte desta cidade, imensa cidade pequena que surge e agora não cabe mais em um olhar. E sinto ter minha atenção a todo tempo desviada por máquinas que transitam onde antes eram somente pessoas transitando. O tempo mudou. Perdeu para velocidade.​ 

 

Este trabalho tem como objetivo analisar o potencial de subjetivação que em parte se finda em Vitória, capital do Espírito Santo, através de manifestações artísticas (fotografia, audiovisual, artes visuais e plásticas, gráficas) já ocorridas nas ruas deste município, afim de que seja traçado um panorama local sobre sua espetacularização, a criação de cenários de vidas artificiais e como perda da própria existência corpórea, além de investigar possíveis resistências a estas condições. Esta análise é fundamental para se discutir e compreender o próprio discurso de identidade como um construto local e como algo presente também nas ruas.​

 

Buscamos ser habitantes da cidade. Transitamos por ela, admiramos e nos tornamos presentes como possíveis interlocutores. Propomos ações que dialoguem com ela. Isto significa apropriar-se de seus espaços públicos, especialmente da rua — local onde acontecem, de fato, as experiências urbanas. Procuramos ainda sentir olhares, gestos e cores presentes neste local, permitir-nos fazer parte deste amalgamado de pessoas, coisas e seres, bem como, penetrar neste ambiente por completo — intelectual, físico e intuitivo — afim de que haja o envolvimento total e orgânico, simbólico € afetivo. Além disso, propõe-se discutir sobre o excesso de informações e seus processos de significações correspondentes que se entrecruzam na rua a todo instante com tamanha velocidade e desconexão, fazendo com que a sensação de compreensão e interação com o espaço urbano se perca, ou seja, anulada.

Procedimentos

O caminhar na cidade

Para termos a possibilidade de sermos tocados por algo ou alguma coisa, isto é, termos experiências, é importante que nos dispamos de amarras do corpo. Isto requer:

 

(...) um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço (BONDIÁ, 2002, p. 24).

 

Para se experienciar e analisar esta rede complexa que é a cidade metropolitana, é preciso que nos encontremos do mesmo modo que propõe Fernandéz (2008) na primeira parte de seu estudo em que pontua o habitar a cidade através da intimidade com o corpo, buscando o encontro dos pés com o caminhar, os braços com o encontro e os esbarrões, bem como a busca por olhares, mesmo os não correspondidos, mesmo os que evitam o contato. "Caminham sem olhar para frente, sem encarar a cidade ou as pessoas, como se estes aparatos tecnológicos fossem uma espécie de bússola, onde cada uma aponta para um Norte, nunca o mesmo" (FERNANDEZ, p.02, 2008).

 

Caminhar na cidade requer um gesto de pausa, um gesto de apreensão do local, de resistência à velocidade que nos fora imposta. À caminhada é uma maneira de se habitar a cidade, de sentir-se parte deste ambiente público. Do lado de fora: é o nosso elemento: a exata sensação de viver nele. Abandono um abrigo por outro, porém a continuidade, aquilo que perdura e insiste, são estes relevos ao meu redor, estes encadeamentos de colinas que ficam sempre aí. E sou eu quem dou voltas em tomo deles, passeando como se estivesse em casa: ao caminhar, avalio as dimensões da minha moradia (GROS, p.39, 2010).

Como Baudelaire, procura-se buscar a cidade como o viajante que busca sua viagem, em que se proponha no experienciar novas formas de subverter esta condição que nos fora colocada: a todo instante tudo nos passa, nada nos toca. Procura-se enxergar a arte que resiste nas ruas da cidade de Vitória. É possível ainda que se consiga enxergar esta apatia que nos cega e como fugimos dela ainda em pequenos locais como este. “Você conhece essa doença febril que toma conta de nós nas frias misérias, essa nostalgia da terra que ignoramos, essa angústia da curiosidade?” (BAUDELAIRE, p.93, 2011).

 

O habitar e experienciar a cidade

Neste trabalho, propomos dois caminhos, dois ensaios propositivos. Não se pretende chegar a lugar algum específico, pois a experiência por si só é o processo. O primeiro ensaio ocorre através da caminhada, no experienciar a cidade, na intrusão do corpo humano na cidade contemporânea e ele como principal instrumento de provocação da cidade, pelas

suas ruas, praças e espaços públicos.

 

Este ocorreu durante boa parte do processo desta pesquisa, em que pude participar de diversas atividades e grupos ligados a práticas de intervenções urbanas. Desse modo, propõe-se aqui habitar a cidade como quem habita os cômodos da casa. O mesmo que habita é quem cuida e tem conhecimento de onde ficam todas as coisas. É usuário dos cômodos, investiga novas formas de habitar. Todavia, antes de habitá-la, é preciso que se faça ocupar aquele espaço. Sobre este verbo, do dicionário retira-se a seguinte afirmativa: “Encher um espaço de lugar e tempo”, ou seja, dar vida. No caso da cidade, é preciso encontrar os lugares que ainda têm vida ou que são sujeitos a terem vidas. Sejam os espaços públicos como a praça, a rua, os gramados, ou aqueles ditos como os não lugares.

 

Desde o segundo semestre de 2011, iniciamos algumas proposições de intervir na cidade de Vitória, seja por ações artísticas em que proporíamos, fundamentalmente, trazer à rua à possibilidade de pensá-la como uma extensão da casa e propor que os passantes do local repensassem ou, minimamente, se atentassem a funcionalidade ou não daquele espaço

público.

 

O intervir na cidade: 1. Escadaria Maria Ortiz, Centro de Vitória, 2011

Em novembro de 2011, instigados pelas transformações sofridas no Centro de Vitória por causa das diversas obras por qual passou, começamos a nos organizar para propor ações no espaço urbano que nos remetessem a atividades cotidianas caseiras, como assistir um filme, fazer uma refeição ou simplesmente o fato de sentarmos em alguns lugares que, comumente, não são utilizados para estes fins.

 

A primeira atividade teve início na Escadaria Maria Ortiz, em frente à Praça Costa Pereira, no Centro de Vitória. Propusemos a exibição de um filme mudo de Charles Chaplin na escada. O número de pessoas que se aproximou foi razoável — em torno de 20 a 30 —, entre aquelas que ficavam € assistiam um pouco e outras que nos perguntavam o que fazíamos ou se não tínhamos medo de ficar ali. Um senhor, frequentador assíduo da praça, nos disse que era cantor e que queria mostrar um pouco de seu trabalho para nós. Ficou conosco cantando músicas de sua autoria, muito engraçadas, enquanto amigos improvisavam no pandeiro.

O intervir na cidade: 2. Shopping Vitória, Enseada do Suá, 2012

Em fevereiro deste ano, nos reunimos novamente na rua. Desta vez o local escolhido foi em frente ao Shopping Vitória, no bairro Enseada do Suá. A ideia era uma reunião para pensarmos possíveis intervenções artísticas no espaço público em que estávamos. À reunião por si era uma maneira de habitar aquele espaço. Pessoas paravam e ficavam nos observando, achando que éramos hippies ou que estávamos vendendo algo. Na verdade, estávamos sentados comendo e conversando. Isso já era algo inimaginável para a região inóspita que é em frente ao shopping. Um local de passagem onde pessoas ou estão apressadas para pegar seus ônibus ou estão paradas o esperando. Os espaços públicos têm se tornado cada vez mais assim.

 

O intervir na cidade: 3. Ocupar gramados, Enseada do Suá, 2012

 

Dia 18 de maio de 2012, um grupo de habitantes da cidade de Vitória, capital do Estado do Espírito Santo, propôs uma retomada de uso do espaço urbano. Essa proposta foi desencadeada após um ato truculento de uma ação policial na cidade de Belo Horizonte, (veja: http:/'tinyurl.com/7fmkdxy), onde cidadãos foram presos de forma arbitrária após se recusarem a sair dos gramados de uma praça pública. (Texto retirado do Blog Ocupar Gramados, disponível em: http://ocupargramado.blogspot.com, em 21 de maio de 2012).

 

Fundamentalmente, o grupo Ocupar Gramados propõe, assim como nesta pesquisa, habitar a cidade, no sentido de valorizar e transformar o olhar sobre a cidade, experienciando-a e dialogando com os espaços públicos. Trata-se de reuniões que ocorrem nos gramados ociosos da Grande Vitória (o primeiro foi no gramado em frente à Av. Fernando Ferrari, em Jardim da Penha; o segundo, no gramado do Monumento ao Imigrante, ao lado do Shopping Vitória, na Enseada do Suá; e o terceiro, até então, no trevo da Av. Norte-Sul, na divisa entre os munícipios de Vitória e Serra).

 

Pude participar num dia em que um participante fez um prato típico capixaba, a famosa moqueca. Outros construíram mobiliários feitos de madeira antiga e tocavam instrumentos e outros, ainda, entregavam mensagens gentis para os motoristas que paravam no sinal. Notei a carência de ações como esta para fomentarem, no mínimo, discussões sobre espaços públicos ociosos como estes.

A experiência da imagem: o visual e o verbal

Outro caminho que nos propusemos realizar nesta pesquisa ocorreu a partir de experiências sobre imagens fotográficas, compreendendo-as, como destaca Benjamin (1959), sem o caráter de um “instrumento mágico”, em que é atribuído um valor intangível, mas sim como passível a ser dado sua função artística, afim de que se subvertam as condições humanas hegemonicamente impostas, no intuito de reativar ou minimamente aguçar nossos olhares para outras possibilidades de interação com a cidade, enxergando como fundamental atentar-nos para discussão acerca da arte contemporânea neste contexto.

 

Portanto, destaca-se que todas as mídias e os modos de produção visual utilizados na contemporaneidade, como cinema, vídeo, fotografia, design, performance, artes plásticas, etc. tomam como discussão o par visual/verbal, quando se tratando da correlação entre ambos. Assim, é preciso pontuar possibilidades destacadas sobre o texto em relação à obra, que seriam fundamentalmente: disputa — entre muitos enunciados misturados e colocados como passíveis a interpretações hegemônicas; como uma crítica deslumbrada, de modo que o discurso seja uma maneira de se criar; ou ainda, quando artistas fazem referências a seus próprios trabalhos, fazendo com que eles tentem de algum modo serem espectadores de suas obras (BASBAUM, 1995, s/p).

 

Deste modo, é preciso falar de Marchel Duchamp, artista apontado como um dos precursores da contemporaneidade. Muitos de suas questões levantadas em suas obras — especialmente o conceito de apropriação de um objeto produzido industrialmente ou mesmo da existência de um “ser supremo” que legitime ou não a obra de arte é explorado.

 

Em 1913, eu tive a feliz idéia de amarrar uma roda de bicicleta a um banco de cozinha e vê-la girar. Alguns meses depois, comprei uma reprodução de uma paisagem de uma noite de inverno, à qual dei o nome de “Farmácia” depois de adicionar dois pequenos pontos, um vermelho e um amarelo na linha do horizonte. Em Nova York, em 1915, comprei numa loja de material de construção uma pá de neve na qual escrevi “In advance ofa broken arm” (“Em caso de um braço quebrado”. Foi por volta dessa época que a palavra Readymade (“Já pronto”) veio a minha mente para designar esse tipo de manifestação (DUCHAMP, 1961, p.1).

 

“O ato plástico duchampiano se realizaria no intervalo que separa e que liga a palavra e a coisa, um intervalo de indeterminação, de acaso e liberdade (...)” (BASBAUM, p. 383, 1995). A seguir, encontram-se 03 fotos em que se propõe dialogar com este potencial de dualidade texto/objeto de arte afim de que possam ser reinterpretadas através de títulos; ressignificando de acordo com meus interesses nesta pesquisa e interfaceando com a proposta de Duchamp e a crítica de Basbaum.

 

Considerações

Talvez a maior crítica dos errantes urbanos aos urbanistas modernos, tenha sido exatamente o que Oiticica resumiu de forma tão clara em “poetizar o urbano. Os urbanistas teriam esquecido, diante de tantas preocupações funcionais e formais, deste potencial poético do urbano, algo tão simples, porém imprescindível, principalmente para os amantes de cidades (JACQUES, 2004, s/p).

 

Este trabalho foi e ainda é suscetível a várias inventividades. Como afirma Jacques (2004), trata-se de uma tentativa, de uma errância, tratam-se de caminhadas, percursos que levam a lugares distintos, não é munido de uma metodologia a priori, porém o seu processo pode ser constituído como metodológico, entendendo esta palavra como procedimento que liga ela mesma ao objeto, possivelmente, sendo ela mesma um dos objetos de contestação deste trabalho. É imprescindível referenciar a experiência como principal instrumento para execução e organização do trabalho, compreendendo-a como uma ativação corporal legítima, posto que nossas sensações e experimentações do espaço urbano são mecanismos muito importantes.

 

Além disso, um terceiro ponto diz respeito do potencial de subjetivação e artístico que em parte se finda na contemporaneidade. Desenvolver e provocar meios de reativá-los, mesmo que pelo efêmero instante do registro ou até perdurável por algum tempo, é o principal objeto de estudo, aqui representado por meio das imagens. Salienta-se a necessidade em continuar este trabalho, posto que, tratando-se de um percurso, vislumbram-se as mais diversas possibilidades para se realizarem no espaço urbano.

 

 

Referências

BASBAUM, Ricardo. Migração das palavras para a imagem. Rio de Janeiro, 1995. Ed: Gávea.

BAUDELAIRE, Charles. Sobre a modernidade. Rio de Janeiro, 1996. Ed. Terra e Paz.

____________. Pequenos poemas em prosa [O spleen de Paris]. São Paulo, 2011. Ed: Hedra. BENJAMIN, Walter. A obra de arte no tempo de suas técnicas de reprodução. (CL'oeuvre d'art au temps de ses techniques de reproduction”, em Oeuvres Choisie). Tradução: Maurice de Grandillac. Paris, 1959, pp. 193-235.

____________. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura, história da cultura. São Paulo, 1994, Ed. Brasiliense.

____________. Obras escolhidas III — O narrador; Charles Baudelaire — um lírico no auge do capitalismo. São Paulo, Brasiliense, 1995.

BONDÍA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Universidade de Barcelona, Espanha, 2002.

DUCHAMP, Marcel. A propósito de “readymades”. Paris, 1961.

FERNANDEZ, Pablo Sebastian. Narrativas Urbanas de um Caminhante. Dissertação de Mestrado — FE/Unicamp. Campinas-SP, 2008.

GROS, Frédéric. Caminhar, uma filosofia. São Paulo, 2011. Ed: É Realizações.

JACQUES, Paola B. Elogio aos errantes. (“Eloge aux errants: bref historique des errances urbaines”?. Portal Vitruvius, ano 5, vol. 5. São Paulo, 2004. Disponível em: <http:/hwww. vitruvius. com. br'revistas/read/arquitextos/05.053/536> Acesso em: 28/06/2012.

bottom of page