Mapas-movimentos: uma experiência crítica coletiva em cartografia e cinema
RAMOS, G. T. SCHER, T. S.; REIS, C. B.; CASTRO, M. A. Mapas-movimentos: uma experiência crítica coletiva em cartografia e cinema. Artigo apresentado no IV Cinema Urbana, Brasília, 2022.
Gabriel T. Ramos
Tatiana S. Scher
Camila B. Reis
Mateus A. Castro
Resumo: Esta comunicação tem como objetivo apresentar os procedimentos metodológicos e coletivos de caráter cartográfico e audiovisual realizados para a pesquisa de doutorado "Mapas-movimentos: narrativas de deslocamentos urbanos por meio de [outros] funcionamentos de sistemas cartográficos" (2021). O texto é elaborado por quatro participantes da pesquisa, que realizaram atividades a ela vinculadas, apresentando seu contexto em relação à arquitetura e urbanismo, especulando-se um campo de expansão das cartografias críticas em aproximação ao audiovisual, às artes visuais e às ciências humanas. Destacam-se vídeos realizados dos participantes do texto para a pesquisa, em que são esboçadas reflexões sobre os procedimentos metodológicos, os objetos específicos e a formulação das hipóteses articuladas em imagem, som e movimento.
Palavras-chave: mapas-movimentos; cartografias críticas; cinema; experiência coletiva.
Os funcionamentos de sistemas cartográficos
Nos últimos anos, como docente e discentes do campo da arquitetura e urbanismo, em salas de aula, um problema recorrente tem nos chamado atenção: a realização de cartografias descompromissadas e desencarnadas de contextos para os quais seriam utilizadas. Ao terem que realizar análises para uma cidade, muitos docentes e discentes tendem a fazer dois movimentos, geralmente, associados: utilizar-se de sistemas de geoposicionamento, geolocalização e geovisualização da Google (Earth, Maps e Street View) para realizar uma leitura do lugar, “deambulando” pelo mapa; e, quando vão fisicamente ao território, realizam-na de dentro do carro.
Tanto por meio de relatos quanto pelas imagens apresentadas, a visão do para-brisa do carro costuma aparecer. As palavras “comodidade”, “conforto”, “segurança” e “alívio” tendem a vigorar como as mais ditas, tal qual estivéssemos dentro de um comercial de automóveis. O surpreendente não costuma ser as palavras em si ou a naturalização cada vez maior da utilização dos sistemas da Google, como se existissem desde sempre. Mas por não aparecer, em nenhum momento, questionamentos sobre o porquê daquelas imagens serem produzidas e o que elas significam. Afinal, em alguma medida, trata-se de representações de espaços; no limite, é um sistema a fornecer espaços prontos para serem usufruídos, sem que se questionem suas procedências.
Tais questões surgem igualmente quando assistimos ao filme Nunca é noite no mapa,[1] em que o narrador-realizador apresenta uma visão especulativa e crítica do sistema cartográfico da Google, questionando, pelo vocativo "mapa", o que nele se vê. O mapa da Google apresenta rostos das pessoas tal qual placas de carro: desfocados. O ângulo é sempre o mesmo, e todo lugar parece qualquer outro. A viatura da Google entra em locais supostamente mais seguros, evidenciando, enfim, que o mapa é uma reprodução social. E dada a histórica fidedignidade confiada à forma-mapa, nada mais avassalador do que ela ser cada vez mais inquestionável, já que, mais recentemente também é a ela entremeada alta produção e consumo de fotografias em tempo real.
Embora tais questões tenham sido mobilizadas em diversos espaços de sala de aula em que estivemos, para nós, havia a necessidade de produzirmos outra gramática para esses mapas em uma pesquisa, em que pudéssemos fissurar, de alguma forma, seus sistemas; ou, minimamente, fazermos perguntas diretamente a ele. E mais: produzirmos outros funcionamentos (FLUSSER, 2007) para os sistemas cartográficos. E que, ainda, Google Earth, Maps e Street View pudessem ser explorados como primeiro estudo de caso, já que é o sistema mais difundido. A ideia era que fosse evidenciado um viés inventivo a dar conta de disputar esse campo, utilizando-se dos mesmos códigos e signos: telas, buscas, pins, trajetos, distâncias, rotas programadas, linhas, fotografias, capturas de tela, cliques, rolagens, acelerações e desacelerações.
Assim, dada a problemática surgida em sala de aula, essa investigação foi pensada, em primeiro momento, como ateliê de curso de arquitetura e urbanismo. A proposta era de construir, no ano de 2020, uma articulação entre pesquisa-ensino-intervenção, surgindo o projeto “Cartografias de deslocamentos do território urbano contemporâneo”,[2] com objetivo mais geral de realizar outras narrativas de deslocamentos urbanos, em que o processo coletivo fosse a principal estratégia. Com os efeitos dos decretos estaduais, distritais e federais e das normativas universitárias para isolamento social, por conta da pandemia de Covid-19, algumas importantes decisões precisaram ser tomadas, apontando outras direções para a pesquisa.
A primeira delas foi a adaptarmos para um contexto online e remoto de abordagem, entendendo que este espaço também poderia fornecer novos caminhos. Em seguida, a fim de configurar outro espaço coletivo, e aproveitando o caráter territorialmente disperso da pesquisa, realizamos uma chamada aberta, em meados de agosto de 2020, a participantes de todo Brasil. Nesta chamada, além de explicarmos, brevemente, particularidades da pesquisa, intentamos entender o perfil dos interessados e questionamos, sucintamente, as intenções dos possíveis participantes na contribuição coletiva, bem como apresentamos os procedimentos de trabalho.
Outra decisão foi compreender que o espaço textual não seria suficiente para contemplar os procedimentos, o que acarretou uma estratégia de montagem de um site para a pesquisa, tornando-se, ainda, uma plataforma paralela de comunicação. Após as inscrições dos participantes, realizamos, ainda em agosto de 2020, uma primeira reunião online, via videoconferência, ocasião em que se teve acesso ao contexto completo da pesquisa. Neste encontro, a diversidade de participantes nos chamou atenção: quarenta estudantes de graduação e pós-graduação de instituições públicas e privadas; de diferentes etnias, gêneros, classes sociais e territórios, correspondentes a todas as regiões geopolíticas brasileiras: um mapa se formava. Mas, como todo mapa é uma reprodução, mesmo que contemplasse uma diversidade de atores, o eixo dominante continuava sendo o centro-sul brasileiro, com a maioria dos participantes provenientes do estado de São Paulo.
Assim, os procedimentos para realização da pesquisa colaborativa e coletiva foram sendo desenhados. Desfeitos e refeitos; tecidos a todo instante, em experimentações diversas: de sentidos, de mundos e de formas de visualização. A costura da pesquisa se fez gradualmente e um comum se constituiu. Assim, a seguir, apresentaremos o contexto de surgimento da pesquisa, os métodos utilizados em interfaces entre cinema e cartografia e as reflexões trazidas para problematizar o tema.
UMA INCURSÃO NA PESQUISA-INTERVENÇÃO
A pesquisa Cartografias dos deslocamentos do território urbano contemporâneo concentrou informações das experimentações metodológicas e teve como base central a constatação de problemas e metodologias observados em obras estudadas do campo da arquitetura e urbanismo com aspectos fundamentais a serem atualizados. Isto se desdobrou no contexto das experimentações em narrativas urbanas, que, por sua vez, foram circunscritas no tempo histórico de cinco meses de duração das atividades semanais de pesquisa (agosto a dezembro de 2020), em ambiente digital, via videoconferência, em formato de encontros, com periodicidade de três a cinco vezes por semana. Funcionavam como reuniões de organização; estudos de metodologias e conceitos pertinentes à pesquisa; e ainda da elaboração de planos de trabalho, planilhas, roteiros; de processos de decupagem e edição de filmes; e de desenvolvimento de artigos e ensaios textuais.
Ao longo dos cinco meses de pesquisa, foram realizados 27 vídeos (nomeados como mapas-movimentos, ou a sigla MM), por 25 colaboradores, em narrativas de 27 rodovias e avenidas, provenientes de 19 cidades, em 11 estados brasileiros mais o Distrito Federal (para compreensão do site, sugerimos a consulta ao site mapasmovimentos.com). Embora os trabalhos tenham igual relevância, objetivamos, em seguida, sistematizar a presente leitura, tentando torná-la a mais fluida possível e não tão extensa. Desse modo, neste espaço, buscamos apresentar algumas narrativas, tanto por conta de objetos específicos, formas de realização, quanto, ainda, por contextos e particularidades. Por conseguinte, os vídeos escolhidos para esta explanação são os Mapas-Movimentos 2, 3, 5 e 26.
Mapas-movimentos 2 [MM2]: Rodovia Transamazônica
O vídeo Mapas-movimentos 2 [MM2]: BR-230, Rodovia Transamazônica, Medicilândia – PA (Gabriel Ramos, 2020, 4”31’, Fig. 1) tem como objeto de estudo a BR-230 – Rodovia Transamazônica, no trecho entre Altamira e Medicilândia, no Pará. Utiliza-se da visualização de topo do Google Maps e do Street View, a fim de mostrar o trecho de 80 km de rodovia, entre a saída sudoeste de Altamira até o raio de 2km, em torno da antiga Usina Abraham Lincoln, em Medicilândia. Em áudio, mesclam-se trechos de narração à época da inauguração da via, ambientações de estradas e narrações próprias. Para realizar o deslocamento de 80 km dentro de um curto período de vídeo, ele é acelerado tal qual um timelapse, dando a impressão da viatura da Google, no ato da captura, estar em alta velocidade.
Figura 1. Trecho de MM2: BR230, Rodovia Transamazônica, Medicilândia – PA. Captura de tela do Google Maps. Realizador: Gabriel Ramos.
De modo fragmentado e pausado, a narração parte da perspectiva de dar vários significados, já que o nome das coisas, dos lugares e das vias se transformam ao longo do tempo; e são apagados de tal forma a não mais serem associados ao que eram em primeiro momento. Neste contexto, o mote do vídeo se desdobra sobre o fato da Rodovia Transamazônica concentrar uma gama de situações controversas desde sua fundação até os dias atuais.
Tudo começa com o nome da cidade escolhida: Medicilândia, criada à altura do governo do general Emílio Garrastazu Médici (1969-1974), em meio à Ditadura Militar Brasileira (1964-1985).
Para localizar Medicilândia no mapa, apresentam-se referências: Altamira, maior município brasileiro em extensão geográfica, às margens do rio Xingu, onde foi implantado o marco zero da Rodovia Transamazônica, em 1972; e a emblemática Usina Hidrelétrica de Belo Monte (2011), na Bacia do Rio Xingu. Para ligar as vias, toma-se a saída sudoeste, que, ainda em Altamira, possui o nome de um político ainda vivo – explicitado no vídeo – para, depois, tornar-se a Rodovia Transamazônica.
Ao longo de alguns minutos na rodovia, a estratégia de edição acelera bastante o vídeo para vencer a quilometragem de uma cidade a outra. Durante esse percurso, as imagens que aparecem – datadas da última captura pela Google, em outubro de 2019 –, em parte, contêm solo asfaltado; e, em grandes trechos, mais próximos à cidade de Medicilândia, partes em terra batida.
Ainda neste deslocamento, ouvem-se áudios oficiais da inauguração de Pacal (Projeto Agroindustrial Canavieiro Abraham Lincoln), em 1971, que prometia garantir empregos na região. A usina de cana-de-açúcar Abraham Lincoln se tornou um dos principais trunfos do governo de Médici, sendo ponto fundador, em 1973, no km 92 da rodovia, da cidade de Medicilândia. Logo no início, a usina não dá lucros e é vendida para uma empresa privada que, posteriormente, entra em falência e acaba por devolvê-la à União, em nome do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), tornando-se ruína até os dias atuais.
Mapas-movimentos 3 [MM3]: Av. Dr. Labieno da Costa Machado
O vídeo Mapas-movimentos 3: Avenida Doutor Labieno da Costa Machado, Garça – SP (Mateus Agostinho de Castro, 2020, 4”42’, Fig. 2) tem como objeto de estudo a Avenida Doutor Labieno da Costa Machado, via com aproximadamente 4,5km de extensão, na cidade de Garça, em São Paulo. Utiliza-se da visualização de topo do Google Maps e do Street View, a fim de mostrar o trecho da via que corta o centro da cidade e seu entorno. Em áudio, mesclam-se narrações próprias, ambientações de estradas e uma pequena fala de Ermínia Maricato.[11]
Figura 2. Trecho de MM3: Avenida Doutor Labieno da Costa Machado, Garça – SP. Captura de tela do Google Maps. Realizador: Mateus Agostinho.
Ao longo do vídeo, narra-se o fato de Garça ter “entrado no mapa” a partir de 2011, quando a viatura da Google realizou a primeira varredura na pequena cidade do interior paulista com pouco mais de 40 mil habitantes. O vídeo torna compreensível, tanto em áudio, quanto em imagem, o evento da chegada de variadas e grandes redes de lojas na cidade, como Americanas, Pernambucanas, Lojas Cem e Casas Bahia, o que ainda não tinha acontecido durante sua história, na perspectiva de notar a partir do olhar da diferença, no caso, da transformação de uma economia local para outra mais global.
[1] CARVALHO, E. (Realizador). (2016) Nunca é noite no mapa. [vídeo]. Brasil: Ernesto de Carvalho. Disponível em: https://vimeo.com/175423925. Acesso em 13/06/2022.
[2] A pesquisa foi vinculada ao Curso de Arquitetura e Urbanismo (UAECSA/UFG - Campus Goiás), em parceria com o Instituto de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (IAU USP) e o grupo de pesquisa Núcleo de Estudos das Espacialidades Contemporâneas (NEC IAU USP). Também vinculada à extensão da UFG, por meio do projeto “Cartografias dos deslocamentos dos territórios urbanos: uma leitura coletiva e colaborativa sobre as relações de poder em rodovias brasileiras”. Todas as narrativas estão disponíveis no site: mapasmovimentos.com.
Deslocando-se pela via, o narrador vai apresentando locais em que não fica evidente, a partir de um olhar desencarnado, que há especulação e interesse no valor da terra na cidade: em 2011, iniciam-se burburinhos sobre uma possível reforma na rodoviária (que só se confirma em 2018, ano da última leitura da Google).
Posteriormente, as lojas que existiam na antiga rodoviária foram desapropriadas; anos a fio, chegam novas marcas e franquias de grandes empresas e conglomerados de varejo, como a Lojas Cem. As igrejas menores vão sendo substituídas por maiores, como a imponente Universal do Reino de Deus dentro da região central.
Ao final, a narração traz à tona o exemplo contundente da venda da antiga rodoviária. O edifício localizado no centro da cidade pertencia a famílias que divergiam quanto a sua compra pela Prefeitura. Por fim, em 2019, a Lojas Cem adquiriu o edifício e o transformou por inteiro, preservando apenas a torre do relógio e a fachada principal, e criando uma pequena praça. A transformação da cidade é protagonizada pela última fala do vídeo: “a cidade, enfim, nunca esteve tão no mapa. Garça está no mapa!”.
Mapas-movimentos 5 [MM5]: Av. Antônio Carlos Magalhães
O vídeo Mapas-movimentos 5 [MM5]: Avenida Antônio Carlos Magalhães, Salvador – BA (Tatiana Silva Scher, 2020, 3”23’, Fig. 3) tem como objeto de estudo a Avenida Antônio Carlos Magalhães, na cidade de Salvador, na Bahia. Utiliza-se da visualização de topo do Google Maps e do Street View, a fim de mostrar a extensão abordada da via. Em áudio, mesclam-se narrações próprias a reportagens e ambientações físicas dos locais.
Figura 3. Trecho de MM5: Avenida Antônio Carlos Magalhães, Salvador – BA. Captura de tela do Google Maps. Realizadora: Tatiana Scher.
O vídeo, feito de cima de uma viatura, contesta os espaços destinados aos carros, confrontando-os às formas de circulação na via, entre pedestres e automóveis. Para isso, utiliza-se de noções da semiótica em relação à paisagem: figura-fundo; nós e pontos nodais; trama; rede; eixo; e marco. Somado a isso, amarra-se a ideia de disputas de forças. De posse disso, a narradora parte de diferentes visadas, seja de sujeitos em locais e situações que compõem esse cenário emblemático, seja de modos de se ver outros deslocamentos (a pé, de carro, de ônibus etc.).
Além de apresentar itens que aparecem com numerações e metragens que lhes configuram mais imponência, como: as oito pistas da via; a informação sobre o número referente à venda de carros daquele ano; o shopping Iguatemi (que gera uma frota de, aproximadamente, 500 mil carros por dia no local); e a grande igreja da Universal do Reino de Deus (14.450 m2). Após apresentar números, o vídeo conduz para um acontecimento de repercussão nacional: um engarrafamento de pessoas na travessia da passarela – de um lado, o shopping, e do outro, a rodoviária –, que fez com que muitas delas acabassem se abarrotando, outras caindo e algumas a escalassem.
A região onde a via escolhida pela autora está inserida, representa um grande nó rodoviário, caracterizado pelo encontro dos traçados de vias estruturantes. E também representa uma disputa de forças entre o velho (bairro do comércio) e o novo centro da capital baiana (genericamente chamado de Iguatemi). Acompanhado da transferência de secretarias do governo e estação rodoviária, uma frente de expansão, incrementada por um processo de conurbação viária ao litoral norte da Bahia e privatização de áreas públicas, iniciado a partir da década de 1960. A disputa transpassa a relação de carros e pedestres e também ganha uma dimensão de conquista simbólica e econômica do espaço.
Mapas-movimentos 26 [MM26]: SRIA II, Guará, Brasília
O vídeo Mapas-movimentos 26 [MM26]: SRIA II, Guará, Brasília - DF (Camila Batista Reis, 2020, 2”48’, Fig. 4) tem como objeto de estudo a Avenida Central do Guará II, uma das Regiões Administrativas do Distrito Federal. Utiliza-se da visualização de topo do Google Maps e do Street View, a fim de mostrar a extensão abordada da via. Em áudio, utiliza-se narrações próprias e o próprio silêncio como elemento. Os sons foram dispensados em virtude da poética dos “vazios”.
Figura 4. Trecho de MM26: SRIA II, Guará, Brasília – DF. Captura de tela do Google Maps. Realizadora: Camila Reis.
O vídeo pauta-se em como os vazios e os espaços urbanos podem ser ocupados de forma temporária e, mesmo que essa temporalidade não apareça no mapa, ela está presente na memória de lugar dos habitantes. Para a construção dessa narrativa, o vídeo se divide em três partes: a primeira é a definição do que é o “efêmero”, a segunda é sobre quais lugares ele ocupa (e, com isso, é preciso entender o que são vazios urbanos) e a terceira trata como o efêmero é representado (ou não) no mapa.
A ocupação temporária desses espaços chamados “vazios urbanos” é definida como “arquitetura efêmera” uma vez que (num caráter transitório) visa modificar temporariamente um espaço ou sua função. Essa modificação do espaço surge a partir de alguma necessidade, seja uma feira livre, uma quermesse, um evento, etc e como classificar esse “novo” uso do espaço como sendo efêmero? Para a criação dos apontamentos do vídeo, buscou-se o paradoxo descrito por Paz (2008) em que: “uma arquitetura só se torna efêmera de fato quando se desfaz de um dado lugar. Conceitualmente, existe apenas quando cumprida sua efemeridade”. Importante ressaltar que a arquitetura, enquanto temporária, não costuma aparecer no mapa e enquanto sua efemeridade não se encerra, é apenas “arquitetura”. Dito isso, questiona-se: quanto tempo é preciso estar (estar material) para se estar no mapa?
Os vazios urbanos são marcas de vários processos como o de especulação imobiliária e até mesmo a falta de uma destinação adequada dos espaços no ordenamento urbano. No vídeo esses processos são ilustrados por meio da timeline do Google Street View. Estes espaços apresentam uso variado, mas em suma eventos temporários como circos, festas juninas e feiras ou como estacionamento de carros. E, ainda, a demanda por um espaço público (com uso) levou a administração local a destinar um trecho da própria Avenida Central para receber a chamada “Rua do Lazer”. O evento ocorre no último domingo do mês, desde 2016, com uma série de atividades.
Dado o contexto, uma situação chama atenção e traz à tona o questionamento “quanto tempo é preciso estar (estar material) para se estar no mapa?”, trata-se de um circo que se instalou em uma dessas áreas pouco antes da pandemia do novo coronavírus e com a proibição de eventos precisou se instalar por um tempo maior do que o costumeiro. Dado esse fato, o circo passou a ser marcado no mapa a partir do momento que perdeu seu caráter de temporalidade e passou a ser fixo.
Essas ocupações apresentam nos habitantes de uma determinada região um lugar de memória e afetividade devido às novas relações, conexões e urbanidades que um espaço vazio não propicia. Considerando o fato de crescentes vacâncias, especulações imobiliárias e a necessidade sempre latente da ocupação dos espaços, a discussão acerca de como esses espaços são ocupados, o que gera nas pessoas e como eles (não) são representados no mapa se faz importante. Observa-se que da data que foi feito o vídeo, até hoje, vários fenômenos efêmeros ocorreram e se encerraram, mas grande parte deles não foram representados no mapa.
Mapas-movimentos: atualização crítica das narrativas dos deslocamentos na arquitetura e urbanismo
Os mapas-movimentos surgem como experimentações de outras formas de narrar a cidade, especificamente, sob o filtro de deslocamentos, compreendidos a partir de contornos cada vez mais difusos e heterogêneos. Com os processos de modernização das cidades ocidentais, entre os séculos XIX e XX, novas formas de deslocamentos foram surgindo, como transportes a vapor, bondes, metrôs e ônibus, em meio a uma experimentação coletiva de uma velocidade mais intensa dos deslocamentos. Após metade do século XX, com a consolidação do automóvel como principal meio de locomoção a conduzir o pensamento rodoviarista, os deslocamentos aconteceram vinculados a uma perspectiva mais individual. Primeiramente, o carro, depois o avião, o satélite e, por fim, a viagem cartográfica pela Google não são somente deslocamentos: são experiências de um mundo individualizante, que tende a pulverizar, dessensibilizar e despolitizar relações socioespaciais.
Ao observarmos paisagens urbanas e rurais em movimento, do para-brisa e das janelas laterais do automóvel; apreendermos, de uma pequena abertura, no alto do avião, o silêncio e a estaticidade das cidades; e, ainda, olharmos uma situação banal capturada pelas câmeras do Street View, não só tendemos a desmobilizar as estruturas de contato com o outro, como a objetificá-lo. Questionarmos tal olhar, que neutraliza e silencia tais pontos de vista, portanto, são exercícios urgentes a serem realizados pelo campo representacional.
Em boa medida, a arquitetura e urbanismo, sob o recorte das leituras da cidade, ainda precisa movimentar suas forças em suas representações para depurar o que tende a esvaziar o contato com a diferença. É nesse vácuo que os deslocamentos nos parecem ser um filtro pelo qual o olhar do cartógrafo pode ser ainda mais ativado. Num momento em que desejamos ouvir outras histórias; ver outras visadas; sentir outras sensações: um novo mundo precisa ser inventado.
Mapas-movimentos são, portanto, agenciamentos, como Deleuze e Guattari bem indicaram (DELEUZE; GUATTARI, 1995). Para esses autores, todo agenciamento detém forma (agenciamentos coletivos de enunciação) e conteúdo (agenciamentos maquínicos), mas, diferentemente de representar, os agenciamentos intervêm. Portanto, eles só acontecem em conexão com outros sujeitos; eles só podem existir quando coletivamente. Assim, produzir agenciamentos é, sobretudo, produzir novas conexões; não tanto pelo modo de fazer (com muitas pessoas, por exemplo), mas pelo fazer-mundo. A operação é cartográfica, porque demanda olhar de outra forma; e, consequentemente, ser olhada de outra forma.
Ao observarmos os produtos audiovisuais dos mapas-movimentos, uma característica comum aos vídeos é que perguntas ficam no ar. Porque não propusemos fechá-las, mas abri-las; ou, como aposta Didi-Huberman (2013): procuramos permanecer no dilema da imagem. Porque só há imagem quando é possível imaginar; e, se o dilema é resolvido, não há o que imaginar. Não porque persistimos no fechamento, mas nas aberturas.
(...) se quisermos abrir a “caixa da representação”, devemos então praticar nela uma dupla rachadura ao meio: rachar ao meio a simples noção de imagem e rachar ao meio a noção simples de lógica (...) Rachar ao meio a noção de imagem seria, em primeiro lugar, voltar a uma inflexão da palavra que não implique nem a imagística, nem a reprodução, nem a iconografia, nem mesmo o aspecto “figurativo”. (...) a questão ainda aberta de saber o que poderia, em tal superfície pintada ou em tal reentrância da pedra vir a ser visível. Seria preciso, ao abrir a caixa, abrir os olhos à dimensão de um olhar expectante: esperar que o visível “pegue” e, nessa espera, tocar com o dedo o valor virtual daquilo que tentamos apreender sob o termo visual (DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 187, grifos originais do autor).
O valor virtual presente em uma imagem-mapa também existe na imagem-filme. Conley (2007, p. 3) aponta que “o mapa não é o filme”, mas que o primeiro fornece uma série de motivos e para os efeitos cinematográficos do segundo. Com um mapa, construímos um território. Com um filme, também. Com um mapa, há narrativas. Com o filme, também. Um mapa em um filme diz respeito a uma história dentro de outra, e pode salientar o que não é visível somente mais pelo mapa, mas pelo filme do mapa: a representação da representação.
Ao observar um mapa como imagem, seja ele em qualquer sistema cartográfico, quais perguntas ainda podemos fazer diante dele? De um modo geral, a grande dificuldade em desvelarmos o mapa é por seu conteúdo ser retórico. Diz-se que, supostamente, não há o que perguntar. Quando iniciamos o trabalho de campo da pesquisa e fizemos, precisamente, essa provocação aos participantes – “o que há no mapa?” –, muitos não a entendiam. Ora, o que haveria de peculiar num mapa ou numa fotografia de uma rua? No mapa, há pins, trajetos, símbolos, vias etc. Na fotografia, há ruas, semáforos, faixas de pedestres, pessoas caminhando, carros passando, edificações etc. O que haveria demais nessa imagem?
Assim, levantávamos a seguinte questão: “estaríamos fazendo a pergunta que, de fato, funciona?” Logo, colocamos outra pergunta, que apostávamos poder funcionar de maneira diferente: “por que há o que há no mapa?” Tal pergunta requeria uma antevisão ao mapa: aberturas a novas narrativas. Ou, como nas palavras anteriores de Didi-Huberman, “tocar com o dedo o valor virtual” do visível. É a partir da própria dimensão do virtual – no que “poderia vir a ser” – que podemos passar a imaginar novos mundos.
Todo atual rodeia-se de uma névoa de imagens virtuais. Essa névoa eleva-se de circuitos coexistentes mais ou menos extensos, sobre os quais se distribuem e correm as imagens virtuais. É assim que uma partícula atual emite e absorve virtuais mais ou menos próximos, de diferentes ordens (DELEUZE, 1998, p. 175).
Esquecer-nos, deliberadamente, de esquemas presentes no mapa visto e perguntar o modo de fazer e o que estava feito: por exemplo, como estava traçada uma via e que via era aquela (nome, forma, posição etc.). Ou seja, os elementos eram os mesmos: o mapa era o mesmo, mas, antes, ele não era imagem, porque não havia como imaginarmos. Estávamos emperrados e cegos perante o mapa.
Assim, podemos fazer funcionar o olhar do cartógrafo: perguntar para o que é dado, mas perguntar de outra forma. Essa é uma forma de fazer funcionar diferente um sistema cartográfico. Em vez de nos posicionarmos perante o que é dado, podemos começar, portanto, a engendrar a própria noção de posição. Ao abrirmos a imagem-mapa, portanto, realizamos outro funcionamento para ela.
No caso de nossa pesquisa, é a linguagem audiovisual que permite a densidade na leitura cartográfica. Se, diante de um mapa, há maior tendência à banalização, mudar a forma de olhá-lo pode ser uma pista que faz ver diferente. Quando assistimos a um vídeo, necessariamente, entramos em sua geografia (CONLEY, 2007): um topos específico surge. O mapa em um filme é, portanto, um espaço dentro de outro; e é essa característica que também ressalta o olhar do espectador.
Outra característica dessa abertura realizada pelo cartógrafo é a capacidade de estar atento às demandas mais urgentes de seu contexto. Por isso, em alguns momentos, indicamos que este trabalho tem um tempo próprio: são questões contingenciais. Até mesmo as perguntas podem funcionar de outros modos. É por conta disso que muitas perguntas e afirmações se repetem, de modos distintos, nos vídeos, como “o mapa não mostra”. Apontamos para a imagem-mapa e dizemos que ele não mostra, porque ele não foi, também, questionado para mostrar aquilo. Esta forma de perguntar é bastante inspirada nos questionamentos que Ernesto de Carvalho apresenta em Nunca é noite no mapa:
O mapa não se importa se eu estou dentro dele ou não; mas eu estou, dentro do mapa. O mapa é indiferente, livre. O mapa não precisa de pernas, nem de asas. O mapa não anda, nem voa, nem corre, não sente desconforto, não tem opinião. Nunca chove dentro do mapa e não há vento no mapa. No mapa não há contramão nem velocidade. Pro mapa não tem engarrafamento, nem direção (CARVALHO, 2016).
Ao assistirmos ao vídeo e ouvirmos repetir o vocativo “o mapa”, como se fosse um sujeito, lembramos a todo tempo que estamos observando uma imagem, porque engendramos aquilo que não é visível nela, mas que se torna, quando interpelado. É uma ativação possível de existir por conta das perguntas sobre ausências e presenças no mapa. Uma estratégia bastante evidente utilizada pelo narrador para reforçar isto é a negação, presente, inclusive, no título do vídeo. Ao dizer o que não há no mapa, imediatamente, somos projetados para fora dele: para a vida, o social, a política, os encontros etc.
Não há nada disso no mapa, em primeiro plano. Para “escová-lo a contrapelo” (BENJAMIN, 1994) e mostrar essas relações, uma estratégia pode ser dizermos o que nele não existe; assim, lembrarmos o que ele é, e, então, imaginar o que mais ele poderia ser. Assim, podemos abrir o mapa, ao mostrar o que ele não mostra, fazendo-o mostrar algo de algum modo. Essa é uma das características fundamentais das narrativas: falar sobre o invisível é, em alguma medida, tornar algo visível. É, assim, que é possível rasgar uma imagem, como aponta Didi-Huberman. Para ele, é fundamental fazermos a escolha diante do que é dado entre saber sem ver e ver sem saber:
(...) quem escolhe saber somente terá ganho, é claro, a unidade da síntese e a evidência da simples razão; mas perderá o real do objeto, no fechamento simbólico do discurso que reinventa o objeto à sua própria imagem, ou melhor, à sua própria representação. Ao contrário, quem deseja ver, ou melhor, olhar, perderá a unidade de um mundo fechado para se encontrar na abertura desconfortável de um universo agora flutuante, entregue a todos os ventos do sentido (...) (DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 187, grifos originais do autor).
É desse “saber”, enquanto síntese e evidência, que a pesquisa tenta se esquivar, apontando para o ver/olhar de outra forma, objetivando, sim, causar desconforto no olhar. Ora, afinal, o que é dado, a todo tempo, se não uma propulsão de imagens e mapas? Trata-se de uma banalização, já que está a todo tempo ao nosso redor. Outra característica que também faz perguntar diferente é a escuta, a camada de áudio incorporada. Ao utilizá-la, em nossas narrativas, por meio de sons de rodovias, carros, vento, rios, por exemplo, aproximamo-nos, mais ainda, de algo que simula uma deambulação offline. E aí acontece uma modulação, um espaço entre o que se observa online e offline. Estaríamos tornando esses ambientes mais semelhantes ao realizar essas operações? Possivelmente, embora os códigos do sistema da Google ainda continuem existindo (setas, navegadores, bússola etc.), lembrando-nos, a todo tempo, que estamos numa plataforma digital. Por outro lado, nem tudo é mimetismo: quando incorporamos os sinos e o som do trem, em meio a processos de rememorações da cidade, recordamos, também, que, justamente, essa presença incorporada ressalta a ausência existente.
A camada de som é, sobretudo, uma modulação na passagem de cenas, na cadência dos movimentos da câmera e na própria compreensão do deslocamento. Ela aponta para uma categoria pouco explorada no campo da arquitetura e urbanismo, pois, mesmo lidando com espaço, deixa de lado o som. E, não seriam propriamente os ecos no som dos espaços a relembrarmos que nele estamos? Os sussurros e gritos, com timbres diferentes, a ouvirmos pelas ruas? A própria orientação e equilíbrio no espaço, que são modulados pelos receptores auriculares no labirinto? Por que esquecermos tanto do som? O som, nesse sentido, trata também de uma exploração sensorial. É essa dimensão que nos auxilia ainda mais a entrar na geografia de um filme; sobretudo, na geografia de um mapa num filme.
É por isso que a discussão acerca de ser ou não uma simulação não é, precisamente, o que buscamos com estas experimentações. Simulacros e real são modulados a todo instante, em atualizações constantes, a todo tempo. Produzir simulacros, logo, é produzir, também, o real. Se não apostássemos nisso, sequer consideraríamos que essas narrativas da cidade pudessem ser outros modos de fazer-mundo, na vastidão possível desta afirmação.Experimentamos um momento, especialmente no campo das representações da arquitetura e urbanismo, que simulacros e realidade se confundem a todo momento. E, se confundem, de fato, porque são camadas que se amalgamam. Nesse sentido, sem sombra de dúvidas, é questão de tempo e maturação para a Google e outros sistemas fornecerem experiências online cada vez mais próximas ao que acontece offline (fato que já se acentuou com a pandemia do Covid-19.[3]
Logo, é um caminho sem volta; o que nos resta, é atuar por cartografias, minimamente, mais conscientes. Na realidade, essas experiências virtuais e seus incentivos tendem a se normalizar. É por isso que devemos mobilizar o que mais podemos ser além do que está dado pelo mapa. A atualização no campo das narrativas dos deslocamentos que propomos realizar com esta tese passa ao largo de querer compreender o que está no mapa. Também não diz sobre mimetizar o que acontece nos territórios offline para um ambiente online. Muito menos qualificar qual experiência se apreende mais ou menos por meio de um território. É, antes de mais nada, a possibilidade de se imaginar mundos: de abrir imaginações outras. Se queremos incorporar outras vozes; narrar outras gestualidades; produzir outras visibilidades, precisamos, sobretudo, imaginar um outro mundo, de outras formas, a todo tempo.
Referências
BENJAMIN, W. Pequena história da fotografia. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994, pp. 90-107.
CONLEY, T. Cartographic Cinema. Minnesota: University of Minnesota Press, 2007.
DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia, Vol. 1. São Paulo: Ed. 34, 1995.
DELEUZE, G. O atual e o virtual. In: DELEUZE, G.; PARNET, C. Diálogos. Trad. Eloisa Araújo Ribeiro, São Paulo: Escuta, 1998, 184p., pp. 173-180.
DIDI-HUBERMAN, G. Diante da imagem: questão colocada aos fins de uma história da arte. São Paulo, Editora 34, 2013.
PAZ, D. Arquitetura efêmera ou transitória. Esboços de uma caracterização. Arquitextos, São Paulo, ano 09, n. 102.06, Vitruvius, nov. 2008 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/09.102/97>.
RAMOS, G. T. Mapas-movimentos: narrativas de deslocamentos urbanos por meio de [outros] funcionamentos de sistemas cartográficos. Tese (Doutorado em Teoria e História da Arquitetura e do Urbanismo) - Instituto de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Carlos, 2021.
[3] No ano de 2020, logo que a pandemia da Covid-19 se confirmou no Brasil, entre março e abril, houve um acentuadíssimo volume nas experiências virtuais, tornando-se cada vez mais exploradas. Tanto como alternativa, quanto para lucrar, uma série de propagandas passou a tomar conta de diferentes veículos informacionais, incentivando pessoas a ficarem em casa.