top of page

Sobre cartografias, deslocamentos e o(s) fora(s): uma ética estrangeira em narrativas cartográficas de artistas-viajantes

RAMOS, G. T. Sobre cartografias, deslocamentos e o(s) fora(s): uma ética estrangeira em narrativas cartográficas de artistas-viajantes. Ensaio elaborado a convite para compor a tese de doutoramento de Clara Sampaio Cunha. In: CUNHA, C. S. Margens inquietas, fronteiras instáveis: relações de (in)dependência no sistema de arte a partir dos anos 1990. Colégio de Artes, Universidade de Coimbraa, 2022.

Pode ser a linha de um pintor, como as de Kandinsky, ou aquela que mata Van Gogh. Creio que cavalgamos tais linhas cada vez que pensamos com suficiente vertigem ou que vivemos com bastante força. Essas são as linhas que estão para além do saber (como elas seriam “conhecidas”?), e são nossas relações com essas linhas que estão para além das relações de poder (como diz Nietzsche, quem gostaria de chamar isso de “querer dominar?”). Você diz que elas já aparecem em toda a obra de Foucault? É verdade, é a linha do Fora (DELEUZE, 1990, p. 136-137).

No texto, Deleuze aponta “linhas para além do saber” como aquelas em que nada se sabe, cuja distinção não existe, diferentemente de “linhas do saber”. Para estas, mobilizamos a mais usual acepção de “fora”: como o contrário de “dentro”, numa posição inversa, a partir de um cheio e um vazio, contrastes, oposições. As linhas propostas por Deleuze, no entanto, são diferentes, pois são invocadas nos escapes do que já foi atualizado, nas potencialidades do múltiplo, em meio aos processos, nas virtualidades (que são sempre reais). São, para ele, produção de produção, vontade de poder, e estão, necessariamente, em movimento. Elas são da ordem dos deslocamentos e das viagens, estão em devir, sobretudo pelos gestos, como o do caminhar em que se desbrava e se torna outro em deslocamento: são as linhas do Fora, com a primeira letra maiúscula, indicando um outro. O outro fora, chamemos, precariamente, de “fora”.

 

Tomemos, portanto, aquilo que está em movimento, nos deslocamentos, nas viagens, como produção-produto: o ato do artista-viajante, nas multiplicidades em potência. Para nos ajudar a pensar, resgatemos Cordões – 30km de linhas estendidas (1969), quando Cildo Meireles experimenta um deslocamento a pé, traduzido por um emaranhado de linhas dentro numa maleta, em cuja parte superior interna há um mapa da estrada Rio-Santos (Figura 1). O artista caminhou pela estrada de terra que viria a se tornar a rodovia – à época, em fase de execução – e as linhas o acompanharam, sendo arrastadas pelo chão. É uma produção de virtualidades, em devir; e a obra se torna uma produção-produto.

 

Uma perspectiva evidenciada pela experiência do deslocamento realizado por Cildo Meireles é a impossibilidade de nos deslocarmos sem sermos notados, sem deixarmos vestígios, sem nos compormos, subjetiva e objetivamente, com os locais pelos quais percorremos. Mais decisivo do que isso, tal cartografia é elaborada por (e com) seus rastros, confirmando que a presença é um evento; e a trajetória, um deslocamento. Por esta perspectiva, viver em trânsito requer um procedimento desterritorializado entre o estar e o não-estar em lugares, e ainda de breves permanências, enunciadas por seus indícios nalgum lugar. De algum modo, para os artistas-viajantes, são precisamente por meio desses vestígios a emergência de suas obras, naquilo que se vê e faz requerer uma atenção de quem as observa. É bastante difícil, se não impossível, para um artista em trânsito, não ser percebido, já que ele é, propriamente, rastro; ele é e se torna visível por meio de sua obra, funcionando como um estrangeiro.

O estrangeiro por sua natureza não é proprietário do solo, e o solo não é somente compreendido no sentido físico, neste caso, mas, também, como uma substância delongada da vida, que não se fixa em um espaço específico, ou em um lugar ideal do perímetro social. Nas relações mais íntimas de pessoa a pessoa, também, todas as atrações e significâncias possíveis no cotidiano das experiências simbolizadas podem revelar o estrangeiro. O estrangeiro é sentido, então, precisamente, como um estranho, isto é, como um outro não "proprietário do solo" (SIMMEL, 2005 [1908], p. 266).

Embora já bastante longínqua, a perspectiva moderna de Simmel (2005) sobre o estrangeiro é de sua mobilidade a partir de seu estranhamento com o que vê ao se movimentar. “Estrangeiro” e “estranho” são palavras cuja etimologia latina está intimamente ligada como “aquele que é de fora” e, aqui, este “fora” nos mostra o usual exercício de estar em movências, de se posicionar diferentemente.

 

No procedimento realizado por Cildo Meireles, há indícios para uma investigação de “fora”, ou mesmo “forense”, palavras que estão também relacionadas, etimologicamente, ao “fórum”: local externo do encontro romano. Da vista de “fora” ao acontecimento da obra, há uma maleta, um mapa, uma rota e um emaranhado de linhas. Podemos sugerir um enunciado: “ligue os pontos, narre-os”. Ligá-los por meio pistas em um olhar atento do observador cuja elaboração ocorre com aquilo que é visível: não há nada dado, mas sugerido, sendo necessário realizar um trabalho forense, que funciona, mal ou bem, tal qual o de um cartógrafo, ligando os pontos e os narrando.

 

Ao testarmos uma narrativa, contudo, sabemos de uma história possível, a partir de um ponto de vista de “fora”. No caso de Cildo Meireles, a história que ele conta e que interpretamos, por meio de sua obra, é a de que um andarilho percorreu uma rodovia e o novelo de linha foi deixado correr por sobre o asfalto durante 30 quilômetros. Se mudarmos a posição, quem observava o caminhante no momento que arrastava um novelo pelo asfalto, pode ter ficado intrigado com a situação. Pode ter conversado, escrito ou relado sobre o fato com outras pessoas sobre o que viu. Pode até mesmo ter esquecido o ocorrido. As narrativas são operações inimagináveis e o enunciado presente é uma estratégia possível de compreensão: ele sempre tem algo a dizer. Funcionam como as cartografias: elas também são narrativas, tramadas por um ponto de vista, e é o exercício do olhar estrangeiro, de “fora”, que nos faz ver diferente.

 

A cartografia, de um modo geral, é conhecida por ser uma ciência cuja suposta precisão dos lugares e suas posições é o mais relevante: ela ocorreu sempre a partir de “fora”, quase nunca voltando à cena do ocorrido e decifrando eventos a partir de várias narrativas, mas, de um modo completamente distinto, retórico, a partir de interesses específicos, circunscrevendo verdades sobre o mundo. Observamos isso desde as Grandes Navegações, nos séculos XVI e XVII, conhecidas pelas conquistas territoriais e emancipações de Estados-Nação, que, contudo, pormenorizaram, e, por vezes anularam, ao longo da história, a exploração e a dominação de populações originárias; à conquista da visão predominante sobre o globo terrestre, com a chegada do homem à Lua e a invenção dos satélites, na década de 1960, numa disputa de mundos por nações ricas; até mesmo à atual hegemonia visual dos sistemas cartográficos da Google, a partir de 2005, com os recortes do que e como o mundo deve ser visto.

 

Com isso, é possível apostarmos, de modo bastante sucinto, que os mapas dos artistas-viajantes, no contato imediato com o mundo, de algum modo, contêm a experiência do Fora, porque eles contêm também as virtualidades, as linhas de escape, a multiplicidade das possibilidades. Já os mapas hegemônicos, organizados pelas linhas do saber e o de poder, são formadas por conjuntos de “dentros” e “foras”, em que, geralmente, os “dentros” são os dominados, e os “foras” os dominantes. Isso nos leva à necessidade de uma revindicação política no ato de cartografar (SPERLING, 2016) e de uma atenção e uma ética-estética da prática do cartógrafo (RAMOS, 2021), sob qualquer aspecto e qualquer interface, superfície e/ou suporte cartográfico.

É preciso que ativemos não a viagem como produto, mas a viagem como produção: os gestos, os deslocamentos, as trajetórias, o desejo de fazer-mundo. Isso talvez possa acontecer se olharmos para um mapa e perguntarmos o ele o que ele diz, estranhando-o sempre, como um estrangeiro. Talvez seja uma certa ética estrangeira que possa desmobilizar as posições dominantes do “fora”, e engendrar o Fora sob qualquer aspecto anterior ao pensamento. Talvez se nos colocarmos como estrangeiros, como Cildo Meireles colocou seu corpo a estranhar-se num local diferente; ou mesmo, talvez, se viajarmos e desejarmos fazer-mundo para onde formos, aquém ou além-mar.

 

Referências

DELEUZE, Gilles. A imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 1990.

RAMOS, Gabriel T. Mapas-movimentos: narrativas de deslocamentos por meio de [outros] funcionamentos de sistemas cartográficos. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo, Teoria e História da Arquitetura e do Urbanismo (Orientador: David M. Sperling). Instituto de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Carlos, 2021, 234 p.

SIMMEL, Georges. O Estrangeiro. In: RBSE, Vol. 4, nº 12, dezembro de 2005, pp. 265-271. Tradução de Mauro Guilherme Pinheiro Koury.

SPERLING, David. M. Você (não) está aqui: convergências no campo ampliado das práticas cartográficas. In: Indisciplinar / EA-UFMG. Belo Horizonte (MG), V. Semestral, n.2, v.2 (2016), pp. 77-92.

bottom of page