Sobre movimentos e encontros: o cinema como habitat dos deslocamentos
RAMOS, G. T. VIANNA, D. B. Sobre movimentos e encontros: o cinema como habitat dos deslocamentos. Artigo apresentado no II Cinema Urbana, Brasília, 2019.
Gabriel T. Ramos
Diego B. Vianna
Resumo: Esta proposta de comunicação acontece a partir de um encontro em deslocamento de dois professores e arquitetos, na região metropolitana de São Paulo. Nascidos em diferentes regiões do Brasil, um deles, ator, roteirista e diretor de cinema, apresenta um filme por ele escrito e representado, o que faz movimentar o outro. Trata-se de “Entre sós” (2018), dirigido por Caetano Salerno, em que observamos o protagonismo de um sujeito cujo território existencial é devastado por uma mudança para uma grande cidade, que o faz criar uma outra linguagem para se comunicar, em primeiro momento, inteligível. O personagem principal apresenta deslocamentos realizados por sujeitos que constantemente trocam de cidades, estados e países; recomeçam suas vidas; e que tentam, ao final, sentirem-se parte, em alguma medida, daquele local. Seus deslocamentos são afetados constantemente pela velocidade contemporânea que causa relações de aproximação e distanciamentos. Tratam-se das nossas próprias trajetórias de vida como professores, arquitetos e artistas, buscando a sorte em distintas cidades do país. No filme, a narrativa deixa à mostra que a fala pode ser a criação mais potente de um sujeito, mesmo que ela seja incompreensível. Em algum espectro, de modo diferente, ele nos remete ao personagem escrivão Baterbly, de Herman Melville (2005), mas que, diferentemente da sua famosa frase quando intimado ao trabalho, ao responder “preferiria não” (“I would prefer not to”), surge em “Entre Sós” qualquer coisa em outro campo semântico. Sob outro, é uma migração, num instigante processo criativo da “viagem na viagem”, pois é no trânsito que isto acontece, como no filme "O Terminal" (Steven Spielberg, 2004). Por fim, a possibilidade de falar sobre “Entre sós”, aqui circunscrita a uma curiosa abordagem a quatro mãos, formada por um arquiteto-ator e um arquiteto-espectador, congrega os encontros e nos faz pensar em algumas questões: qual o corpo que habita o deslocamento? E quais as fraturas que ele expõe ao se colocar, incessantemente, em territórios múltiplos? E como isso se traduz em diferentes modos de narrar? O que acontece com esses corpos quando habitam e movimentam-se por cidades, edificações e pelas próprias pessoas, até mesmo em encontros banais? Haveria uma velocidade específica dada no movimento, cada vez mais ao alcance de um clique e o que isso implica na forma de se experimentar as cidades contemporâneas? E, consequentemente, como se apresentam as fraturas desta velocidade que comprime os corpos que vagueiam onde não há vagas a serem ocupadas? Talvez seja neste campo narrativo que o cinema ocuparia o que Paul Virilio, em “Espaço crítico” (1999), chamou de “movimento do movimento”, pois tenta dar conta de, pelo movimento cinematográfico de uma linha do tempo, colocar o movimento a circular. A partir dessas e de outras indagações, pretendemos pensar o cinema como possibilidade de habitar o deslocamento, numa instigante experiência urbana contemporânea.
Palavras-chave: Cinema. Deslocamento. Movimento. Velocidade. Cidade.
Dos encontros em deslocamento
Este texto surge a partir de uma multiplicidade de encontros: de dois amigos; da arquitetura com o cinema; de um ator com um espectador; de cidades distintas que os autores percorrem ao longo de suas vidas, etc. Trata ainda da vontade de falar de cidade por um olhar que foge às normativas acadêmicas do campo da arquitetura e urbanismo e da banalização da velocidade colocada pelo mundo que demanda deslocamentos. Isto ocorre no momento em que os autores se conhecem em trânsitos distintos, a partir de encontros semanais num curso de arquitetura e urbanismo de uma faculdade privada em Carapicuíba, Região Metropolitana de São Paulo.
O acontecimento dessa escrita é ainda uma conexão geográfica e filosófica, pois propomos pensar cidade a partir do olhar sensível do cinema estando juntos também para falar sobre isso, já que presenciamos, diariamente e cada vez mais, a produção de uma normatividade urbana em detrimento das diferenças; já que percebemos, sobretudo, uma produção de cidade que desestimula os encontros e impõe coercitivamente o consumo a tudo e a todos. Como um mobilizador desta comunicação, emerge o filme "Entre Sós" (2018),[1] que aborda corpos em deslocamentos, a partir de percursos, principalmente, por meio do personagem Gael, representado por Diego Brasil, um dos autores deste texto.
"Entre Sós" (2018) é um curta ficcional dirigido por Caetano Salerno e também roteirizado por Diego Brasil, tendo como enredo um percurso urbano pela vida de Gael, jovem solitário que transita pela grande cidade. Num passeio metalinguístico, as diversas telas de consumo da vida cotidiana (tevês, vitrines, prateleiras, celulares) percorrem os olhos do protagonista e se configuram como a paisagem em trânsito por meio da tela cinematográfica.
Trata-se de um filme com referências bastante claras à modernidade (mas aos olhos do presente), como as cenas retiradas do filme estadunidense natalino "It's a wonderful life (Frank Capra, 1946); a flanerie baudelairiana apresentada por Walter Benjamin nos seus escritos dos anos 1930 e 40, representadas nas caminhadas do protagonista (Figura 1); ou mesmo a própria forma de consumo do olhar de Gael que nos faz remeter às transformações urbanas daquele período entreguerras.
[1] Entre Sós. Ano: 2018. Duração: 7min. País: Brasil. Diretor: Caetano Salerno. Roteiro: Diego Brasil.
Figura 1. Frame de "Entre Sós" (2018), a partir da caminhada urbana do protagonista. Fonte: acervo próprio.
Na narrativa apresentada, embora fixos às telas, os olhos de Gael emergem distantes daquele território que habita. Seu corpo, aparentemente ricocheteado pela velocidade dos deslocamentos, parece sobrevoar ausente os espaços, sobretudo, quando é interpelado por outros personagens que aparecem ao longo do filme. Quando isso ocorre, Gael, com os olhos fixos no que não se enxerga, profere palavras incompreensíveis.
Ao olhar uma vitrine e fitar o nada, um personagem se aproxima de Gael e o pergunta se ele tem fogo para acender seu cigarro. Em primeiro momento, o protagonista nada responde, como se não desejasse, ou como se desejasse outra coisa. Em seguida, numa nova investida, o protagonista profere palavras incompreensíveis e sai do campo visual.
Esta cena é uma convocação ao espectador a penetrar, ainda mais claramente, no universo de Gael. A solidão do olhar de quem se deslocou e chegou numa grande cidade, geralmente, por conta de alguma oportunidade de estudo ou trabalho, fica estampada no semblante de Gael (Figura 2). Ele passa os olhos pelas telas como quem vê, mas não enxerga. Não à toa, o filme que está passando é "It's a wonderful world" (Frank Capra, 1946), que trata, justamente, sobre a dimensão da felicidade atrelada ao consumo. Gael consome um filme que apresenta uma felicidade precária. Coloca-se em xeque o olhar hegemônico sobre a felicidade.
Figura 2. Frame de "Entre Sós" (2018), com detalhe para o olhar de Gael, fixo em um horizonte outro. Fonte: acervo próprio.
A segunda interpelação que recebe é dentro de um supermercado, ao escolher um produto de limpeza e uma senhora lhe sugerir que pegue outro que não deixe manchas embaixo dos braços (Figura 3). Ao insistir no diálogo, de novo, o filme afirma sua argumentação e coloca Gael em tensão.
Figura 3. Frame de "Entre Sós" (2018), com detalhe para o olhar de Gael, fixo na prateleira. Fonte: acervo próprio.
Tal qual na cena anterior, após sua fala incompreensível, Gael sai de cena e se coloca a perambular pela cidade a ser bombardeado pelas imagens velozes da grande urbe. A realização de um sujeito que não se encontra em lugar algum é a caminhada: há nela um grande coeficiente de desterritorialização (DELEUZE, 1996). Gael é um estrangeiro de seu mundo habitado.
O estrangeiro e a (des)territorialização
(...) construímos um conceito de que gosto muito, o de desterritorialização. (...) precisamos às vezes inventar uma palavra bárbara para dar conta de uma noção com pretensão nova. A noção com pretensão nova é que não há território sem um vetor de saída do território, e não há saída do território, ou seja, desterritorialização, sem, ao mesmo tempo, um esforço para se reterritorializar em outra parte (DELEUZE, 1996, s/p).
"It's a wonderful life" (1946) é um filme que compõe a paisagem de "Entre Sós" (2018) e é o importante diálogo protagonizado por George Bailey (James Stewart) e Sr. Potter (Lionel Barrymore) que inicia o curta de Caetano Salerno, mostrando um espectador em distintos processos de desterritorialização (geográficos, linguísticos, comunicacionais etc.). São deslocamentos que incidem, principalmente, na dimensão política da linguagem, como a forma de expressão exclusiva humana, que nos distingue da animalidade.
"Entre Sós" explora o protagonismo de um sujeito cujo território existencial é devastado por uma mudança para uma grande cidade, que o faz criar uma outra linguagem para se comunicar, mesmo que a expresse de maneira inteligível. Quando interpelado, palavras ditas por esse "estrangeiro" não se conectam a um contexto de quem as ouve, o que causa estranhamento aos outros sujeitos. É, sobretudo, a partir da pista etimológica das palavras "estranho" e "estrangeiro" – ambas provenientes da mesma matriz latina (extranĕus) – que podemos compreender a operação realizada pela narrativa fílmica.
A figura do "estrangeiro" foi trabalhada na obra de George Simmel (1858/1983d), no contexto das transformações grandes e velozes advindas nas cidades modernas, e sua construção como uma figura anônima multitudinária. Embora longínqua, a pista deixada por Simmel nos auxilia com a característica fundamental deste sujeito: a mobilidade. "Se a mobilidade se introduz num grupo fechado, ela arrasta com ela essa síntese da proximidade e da distância que constitui a posição formal do estrangeiro" (SIMMEL, 1983d, p.55).
Para o autor, no entanto, não haveria propriamente uma crise existencial neste sujeito, mas esta seria sua constituição. Tomando a literatura de Deleuze e Guattari (1996) e conectando ao "estrangeiro" em Simmel (1983d), podemos pensar que o mesmo emerge em relação à multidão e é tomado por um posicionamento de diferença e singularidade, não repetição e identidade. É a própria constituição de seu pensamento sem imagem que faz com que sua forma de existir seja em relação à diferença (DELEUZE, 2006). É a partir dessa reflexão que observamos o personagem principal de "Entre Sós" num pensamento sem imagem. Ele apresenta deslocamentos realizados por sujeitos que constantemente trocam de cidades, estados e países; recomeçam suas vidas; e que tentam, ao final, sentirem-se parte, em alguma medida, daquele local.
Entretanto, é importante mobilizarmos um pensamento: mesmo incompreensível, Gael, o estrangeiro, afirma-se enquanto sujeito criador e instigado por seus desejos. Não se trata dele não querer falar, mas, exatamente, do oposto: Gael quer falar, mas quer falar o incompreensível. Há um posicionamento inventivo que mostra a afirmação de sua existência enquanto sujeito em movimento. Não querer ser compreendido angariaria uma reflexão: afinal, quem é esse sujeito que diz tais coisas ininteligíveis?
Gael é quase Baterbly, o escrivão, personagem de Herman Melville (2005) que, quando interpelado a fazer alguma tarefa de trabalho responde: "preferiria não" (I would prefer not to). Baterbly não pode dizer não ao trabalho, mas pode dizer que preferiria não fazê-lo. Demarca seu posicionamento dentro da própria estrutura de trabalho. Gael prefere dizer, mas para fazê-lo, será da forma como ele deseja. Gael é um estrangeiro que quer falar o ininteligível. E, ao final, ao encontrar quem se manifesta como ele, ativa seu pertencimento àquela linguagem. Há, sobretudo, uma dimensão do campo da identificação a partir da cena final: trata-se da linguagem que conecta os "entre sós".
Movimento e desterritorialização: uma ideia em cinema
Ao perceber o filme emergir da mobilização de um estrangeiro em deslocamento, recordamo-nos de um conhecido seminário para cineastas, em que Deleuze indaga: "o que é ter uma ideia?" (1999, p.4). Esta pergunta, para o filósofo, conecta-se diretamente a seu domínio – "o que é ter uma ideia em filosofia, arte ou ciência?" –, ou seja, uma ideia não aconteceria em um sentido apriorístico. Isto por conta da especificidade de sua forma de expressão, já que, para Deleuze, "ter uma ideia" é, antes, acontecer por relações. Naquele seminário, o filósofo questiona: o que é ter uma ideia em cinema? Para mobilizar sua questão, Deleuze (Idem) vai apresentar alguns exemplos no cinema em que um diretor faz acontecer sua ideia por meio da imagem em movimento, como nos filmes de Robert Bresson.
A pergunta então é essa: esses pequenos fragmentos de espaço visual cuja conexão não é dada previamente são conectados por meio de quê? Pela mão. Não se trata de teoria nem de filosofia. Não é um processo dedutivo. O que quero dizer é que o espaço de Bresson é a valorização cinematográfica da mão no seio da imagem. A junção de pequenos trechos de espaço bressoniano pelo fato mesmo de serem trechos, pedaços desconexos do espaço, pode ser exclusivamente uma junção manual. Daí a exaustão da mão em todo o seu cinema (Ibidem, p.4).
Para Deleuze, portanto, a mão, enquanto gesto, incorporaria a ideia de cinema nos filmes de Bresson. Vincente Minelli, por sua vez, produz um cinema, ainda segundo o filósofo, a partir de um sonho daqueles que não sonham. Já Syberberg e os Straub, da dissociação entre o ver e o falar. Tratam-se todas de ideias em cinema e é sob este ponto de vista que o autor vai afirmar que essas manifestações poderiam estar situadas em outras formas de expressão, como o teatro, mas seriam, independentemente, ideias cinematográficas. Ou seja, mesmo alocadas em outras manifestações, elas se tratariam de ideias que somente o pensamento cinematográfico pode produzir.
Tal inquietação, para nós, decorre do pensamento, do ato da criação, que, em "Entre Sós" se trata da fala (des)territorializada e em movimento. Nesse contexto, a ideia em cinema é a fala incompreensível proveniente dos deslocamentos, sobretudo, dos processos de desterritorialização (Ibidem). Eles acontecem, para Deleuze, porque também há saídas que reterritorializam o sujeito, e é esse processo esquizofrênico que produz outras subjetividades e constitui um novo território existencial, o da fala desterritorializada, possibilitado por conta do movimento cinematográfico. Há na construção do personagem Gael uma ideia de movimento que o coloca em encontro consigo a todo tempo quando caminha ou quando percorre os olhos pelas telas. Apostamos que o curso de vida do personagem, tanto nos momentos de circulação quanto de parada, acontece efetivamente por conta do pensamento cinematográfico.
Se pensarmos na operação cinematográfica sobre os movimentos das vidas dos personagens, resgatamos uma outra narrativa fílmica que mostra como a interrupção no curso de vida de um personagem estrangeiro também causa processos de des/reterritorialização. Trata-se do famoso Viktor Navorski, protagonizado por Tom Hanks, em "O Terminal" (Steven Spielberg, 2004). Natural da fictícia “Krakozhia”, Navorski viaja de avião de seu país para Nova Iorque em busca de um autógrafo de um famoso músico de jazz. Ao desembarcar, recebe a notícia de que acabara de ocorrer um golpe militar em seu país, o que invalida seu passaporte e o mantém preso no aeroporto, já que os EUA não reconhecem o novo governo.
Por conta desse contexto de guerra, o personagem, que não fala inglês, torna-se apátrida e impossibilitado de estar em qualquer categoria prevista para obter o visto de entrada no país norte-americano (asilado, refugiado, imigrante para trabalho etc.). Seu drama dura nove meses, período em que acaba por morar no aeroporto. Diferente de Gael, contudo, o personagem quer falar da maneira mais adequada ao contexto de sua nova vida, fato que o faz tecer outras relações afetivas naquele local. Entretanto, é inegável que há uma melancolia profunda na vida deste sujeito, já que houve a interceptação estratégica em seu deslocamento, indicando, também, a intenção política no controle de sua vida. Ou seja, uma forma do Estado parar uma existência é através da obstrução de seu movimento e é a ideia em cinema que nos auxilia a compreender esse deslocamento.
A transformação pela qual passa Navorski nos permite refletir acerca das formas pelas quais os corpos são afetados pelo controle dos deslocamentos, como os aeroportos, por exemplo. No caso da circulação do aeroporto contemporâneo, em específico, uma passagem marcante de “Espaço crítico” (VIRILIO, 1999) indica um importante paradoxo. Por um lado, é o meio de maior liberdade possível de deslocamento, já que através dele se pode desbravar o mundo, permitindo Viktor Navorski circular do Leste Europeu aos EUA. Por outro, trata-se da “última porta do Estado” (Idem, p.8), e por conta disso, detém os mesmos sistemas presentes em prisões de segurança máxima, moldados por sofisticadas técnicas de vigilância e controle, que submete o personagem à espera. O aeroporto se trata ainda de um elemento singular da “cidade genérica” (KOOLHAAS, 2014), já que a condição de se “estar em trânsito” tem se tornado universal, banalizando as experiências, ao se conformar em um “não-lugar” (AUGÉ, 1994), em que não há a produção de relações afetivas ou simbólicas. Aliás, o próprio personagem de “O Terminal” nos auxilia a compreender esse conceito, já que, é somente através da experiência naquele “não-lugar” (caracterizado por ser de fluxos e passagens), que ele passa a produzir outras relações (de amizade, amor, trabalho), atualizando-o efetivamente em um “lugar”, pois ocorre uma forçada permanência nele, ressignificando-o como seu lar (Figura 4).
Figura 4. Frame de "O Terminal" (2004), com detalhe para o olhar de choro de Navorski com a descoberta que seu país está em guerra. Fonte: TV Globo/Google Imagens
Velocidade e diferença
Na vida contemporânea, há uma modulação da apreensão urbana a partir dessa transformação da velocidade dos deslocamentos, sofridos por Gael e Viktor Navorski, expandindo-se para além de uma divisão espaço/tempo e alcançando o campo sociopolítico, em termos de produção, consumo, apropriação e expropriação, por meio de técnicas, discursos, relações, práticas e formas de fabricação. A velocidade dos deslocamentos supera o desenho físico-territorial das vias (rodovias, aerovias, ferrovias etc.) e abrange rebatimentos advindos das tecnologias da informação,
atualizando-as em vias informacionais, ao se consolidar como condição de existência. Tanto em seu aspecto físico-territorial quanto imaterial, essa formação ocorre pelo suposto “triunfo da técnica, a onipresença da competitividade, o deslumbramento da instantaneidade na transmissão e recepção de palavras, sons e imagens e a própria esperança de atingir outros mundos” (SANTOS, 2001, s/p). Por esse espectro predominante, se destacarmos a velocidade como uma “compressão tempo-espaço” (HARVEY, 2006), ou, por vezes ainda, uma dilaceração dessas instâncias e não uma derivação particionada, podemos constatar importantes e incalculáveis efeitos colaterais.
É a partir de uma leitura da predominância da velocidade que podemos tornar à mostra a fragilização dos encontros urbanos tão claramente expostos em "Entre Sós" (2018), já que o “estreitamento das distâncias se transformou numa realidade estratégica com consequências econômicas e políticas incalculáveis” (VIRILIO, 1996, p.123). Em boa medida, vivemos em uma época de valorização do presente, simultâneo, ubíquo, “tempo real”, atualizada em cliques, curtidas, compartilhamentos; em técnicas de vigilância, controle, transparência; em movimentos ininterruptos e retroalimentados.
A predominância dessa velocidade confirma e atualiza a proposição de Virilio (1996[1977]), ao antever, na década de 70, a velocidade com o objetivo de “ceder terreno para ganhar Tempo” (Idem, p.123), mesmo que este tempo tenha sido conquistado somente por fluxos e não por quem efetivamente experimenta o movimento, como Gael e seu encontro consigo no deslocamento. A prática do movimento, por sua vez, é o ato de circular propriamente dito, e que, na apreensão urbana, acaba por ser submergido, em grande parte, numa dimensão qualitativa, quando não mais podemos captá-lo, mensurá-lo e compreendê-lo. Movimento é, portanto, presente; ou seja, o ato de percorrer é indivisível e o espaço percorrido, passado e divisível (DELEUZE, 1985).
Assim, questionamo-nos acerca dessa compressão espaciotemporal ser impressa em diferentes instâncias, sobretudo, por meio da reflexão sobre as formas de territorialização em que se lhe apresenta, como Gael nas telas e Navorski no aeroporto. Ao ampliarmos o campo da velocidade para sua dimensão intangível, observamos os deslocamentos serem cada vez mais difusos, produzindo, talvez, o ausente olhar de Gael. Porém, esses meios agem de maneira constante, pela vigilância, manutenção e controle, que engendram as próprias maneiras de conduzir os sujeitos. Através desses mecanismos, parecemos atingir o ideal de circulação, ao sermos submetidos à alta celeridade, o que tende a tornar os deslocamentos corredores; achatar e sedimentar superfícies de contato e pré-determinar formas específicas de comunicação, favorecendo desarticulações socioespaciais e de alteridades; limitando, a apreensão urbana. No limite, tende a tornar o corpo de quem se desloca uma passagem e não uma fixação.
A velocidade do progresso tecnológico e das conexões, ao passo que oferece possibilidades de deslocamento cada vez mais diversificadas, submete, por sua vez, sujeitos a locais de alta concentração populacional, em que, paradoxalmente, acabam por ter que lidar fisicamente uns com os outros, aguçando as proximidades. Talvez os diferentes aparatos eletrônicos sejam os meios que acabam por servir como subterfúgio para contenção dos encontros, já que, nos dias atuais, em muitas das vezes, os olhos, quando não fixos nos aparelhos, encontram-se fechados para descanso; os dedos costumam deslizar imagens das telas; o olhar, por fim, tende a ficar em sobrevoo, como Gael e sua forma de viver singular. É uma singularidade radical, uma diferença, um pensamento sem imagem, exposta em sua fala, sua principal invenção, em meio a um mundo de deslocamentos que desmobilizou seu território existencial e o reterritorializou na língua dos desterritorializados.
Referências
AUGÉ, M. Não-lugares: Introdução a uma antropologia da supermodernidade. Campinas, SP: Papirus, 1994.
DELEUZE, G. A Imagem-Movimento (Cinema 1). São Paulo: Brasiliense, 1985.
______. O ato de criação. Palestra proferida em Paris em 1987, transcrita e publicada em Folha de São Paulo, 27 jun 1999, Caderno Mais!, p. 4-5.
______. Abecedário. Disponível em:
<stoa.usp.br/prodsubjeduc/files/262/1015/Abecedario+G.+Deleuze.pdf>. Acesso em: 15 janeiro 2007.
______. A Imagem-Tempo (Cinema 2). São Paulo: Brasiliense, 1984.
______. Diferença e repetição. Tradução de Luiz B. L. Orlandi. Roberto Machado. 2. ed. São Paulo: Graal, 2006. 437 p.
HARVEY, D. The limits to capital. Nova York: Verso. 2006[1982].
KOOLHAAS, R. A cidade genérica. In: Três textos sobre a cidade. São Paulo: Editora G. Gili, 2014.
MELVILLE, H. Bartleby, o escrivão. Uma história de Wall Street. São Paulo: Cosac & Naif,
2005.
SANTOS, M. O tempo nas cidades. São Paulo: Ciência e cultura, 56, 2, abril-maio 2004, p.21-22.
SIMMEL, G., 1983d. O estrangeiro. In: MORAES FILHO, E. (org.). Georg Simmel. pp. 182-188. São Paulo: Ática.
VIRILIO, P. Espaço crítico. São Paulo: Editora 34, 1999.
______. Velocidade e Política. São Paulo, Estação da Liberdade, 1996.