Desequilibrar-se nas linhas e por elas caminhar: experiências cartográficas de fronteira
RAMOS, G. T. Desequilibrar-se nas linhas e por elas caminhar: experiências cartográficas de fronteira. Apresentado no V Congresso Internacional Media Ecology and Image Studies – A virtualização do novo ecossistema midiático, realizado virtualmente entre os dias 1 e 30 de novembro de 2022. Mesa 1: arte e estética. Publicado em Sobre as artes. Ria Editorial. Aveiro, dezembro, 2022, pp. 279-295.
Gabriel T. Ramos
Introdução
Este trabalho tem como objetivo mais geral investigar modos contemporâneos de questionar as linhas esquadrinhadas que tentam capturar os corpos e seus deslocamentos, articulando, para isso, o objeto territorial situado no perímetro do Quadrilátero Cruls, que configura o Distrito Federal, a partir de uma mirada de fronteira. Tal constatação parte da reflexão mais abrangente de que as linhas retas, por meio do uso dos esquadros, podem ser uma possível síntese de um certo pensamento colonial-moderno,[1] orientado por premissas cujo objetivo é demarcar algo com começo e fim, abertura e fechamento, indicando onde – mas, sobretudo, como – se projeta.
As linhas esquadrinhadas – tomadas nesta reflexão como de fato utilizadas pelos esquadros – parecem ser, portanto, a confirmação do que se deve apartar, separar, segmentar, dispor, organizar, hierarquizar; e, somado a isso, eficientemente, contribuir para o melhor aproveitamento das divisões. Mais do que separar, trata-se, principalmente, de como as linhas o fazem, pois partem-se dos esquadros para afirmar ser à retidão o melhor traçado.
Podemos inferir que as linhas retas da modernidade avançam a todas as etapas da invasão dos portugueses nas terras além-mar: as linhas do mapa que vão se atualizando ao passo do desenvolvimento das rotas; as linhas das capitanias; das bandeiras; daquelas à fundação das cidades coloniais. Atualizam-se com o gesto da Independência do Brasil (1822) e a demarcação de um país a ser urbanizado entre fins dos séculos XIX e XX, esquadrinhando-se nele, primeiramente, as ferrovias, e, depois, as rodovias, apartando, por fim, quem não pode sobreviver dentro das grandes linhas, mas às suas margens.
Nesse sentido, pensamos em linhas esquadrinhadas não enquanto metáforas, logo, elas não são operadas deliberadamente, mas pela política como feita por linhas retas, já que elas vêm sendo operadas do lado de dentro: do dominante; dos saberes e dos poderes hegemônicos; da língua e dos que falam; dos que esquadrinham; e dos que decidem sobre a vida de todos. Logo, a reflexão que tem nos mobilizado nos últimos tempos passa a ser como pensar do lado de fora das linhas retas: dos dominados; dos não-saberes e dos contrapoderes; das outras línguas; dos que escutam; dos que são esquadrinhados. Estes são aqueles que, durante muito tempo e ainda nos dias de hoje, têm sido os que não participam da política porque não podem ou não têm tempo. Pensam, sabem, falam, escutam, produzem: mas para quem? Assim, o ato de pensar em um processo que questione o que se narra por imagens ¬– especificamente sendo de nosso interesse, mapas e filmes – tem sido uma operação possível, já que a invisibilização é a premissa do esquadrinhamento. Desse modo, apresentaremos os pormenores e o início desta pesquisa que se desdobra a partir da tensão entre cartografias dominantes (desde as da Missão Cruls) e caminhadas no local.
Mapas hegemônicos: o destino da capital em meio à militarização e ao racismo
A visualização hegemônica dos mapas é uma reprodução de como as sociedades se constituíram, pelas formas, escalas, símbolos e pelo que eles contêm. Se tomarmos o globo terrestre a partir da clássica e dominante Projeção de Mercator (1569) –, atualizada em distintos mapas, como os utilizados pelo sistema da Google –, observamos que esse modo de ver o mundo contém inúmeras distorções, desde os tamanhos e as hierarquias, em que são colocados na parte superior os países mais ricos, a mapear, e, na inferior, os mais pobres, a serem mapeados. Se tomarmos a própria ideia de ocidente e oriente, podemos destacar seu surgimento pelo modo imaginado de uma vista superior e de formas de visualização longitudinais.
Os mapas hegemônicos não só reproduzem, traduzem e reconfiguram relações de poder, como mobilizam e desmobilizam territórios. Eles foram concebidos de maneira dominante por nações mais ricas, conformando sua leitura principal não tanto ao globo, mas à superfície plana e às variações em termos de posição, representação e expressão gráfica (Ocidental e Oriental; Norte e Sul Global; Velho e Novo Mundo; direita e esquerda; centro e periferia etc.). Os mapas foram forjados, em boa medida, por guerras e conquistas territoriais, e, portanto, por um pensamento militarizado. Todo mapa de uma conquista territorial parte de uma visão de expropriação de terras. No caso do Brasil, isso se observa desde a invasão portuguesa e tomada das terras dos indígenas que aqui habitavam, em 1500; e, quase quinhentos anos depois, atualizando-se na tomada do território do planalto central, onde, supostamente, tudo era “desertão” e sertão (FILHO, 2011)[2], tornando-se o Distrito Federal, onde foi tecida a capital do país, Brasília.
Sem o ouro e a prata da América, sem a ocupação de suas terras para o plantio da cana-de-açúcar, do café, do tabaco e tantas outras especiarias, sem a exploração do trabalho indígena e escravo, a Europa não se faria nem moderna, nem centro do mundo. Desta forma, é no violento processo de dominação e exploração da América que se localiza um dos principais fatores da profunda transformação que o cenário mundial sofre em finais do século XV e início do século XVI. Com o extermínio de populações inteiras, a escravidão, a servidão, a (des)possessão de terras, a exploração das riquezas naturais, encontram-se nos fundamentos das relações sociais e de poder que instituem América, Europa e o sistema-mundo moderno que se ergue (Porto-Gonçalves; Quental, 2012, p. 5).
Em 1891, ao ser promulgada a nova constituição do país, transformando-se numa república federativa com o nome de Estados Unidos do Brasil, aparece oficialmente, pela primeira vez, em seu artigo 3º, a vontade explícita de que a capital do país fosse transferida para o planalto central, destinando-se uma área de 14.400 km² para tal. Determinou-se que a área deveria ser explorada por uma missão, que, posteriormente foi legada a Luis Cruls, astrônomo e militar belga, diretor do Observatório Nacional e professor da Escola Superior de Guerra.
Entre junho de 1892 e março de 1893, em busca dessa compreensão do que viria essa nova capital do final do século XIX, forja-se a Missão Cruls (1892-1893) (Figura 1), que realiza uma viagem exploratória ao planalto central, tendo como principal produto o relatório da expedição, publicado em 1894, marcando o início dessa aproximação oficial à região. Esta marcha ao centro-oeste foi capitaneada por militares buscando conhecer esse “sertão”, onde supostamente ninguém vivia.
[1] Cabe ressaltar que a visão “colonial-moderna” aqui apresentada trata de uma lógica hegemônica fundada no ato dominador colonial e não em suas fraturas, como observamos em outros projetos de modernidade no Brasil que aparecem, principalmente, pelo campo da arte e da literatura, como na Semana de Arte Moderna de 1922, e revigoradas manifestações tardias, como o tropicalismo nos anos 1960.
[2] O autor vai construir uma série de hipóteses sobre a ideia de “sertão”, inclusive, como derivada de “desertão”. De um modo geral, cabe ressaltar que em todas elas há “O ‘locus’ cujo sentido é o interior das terras ou do continente” e que “pode ou não vir implicitado à ideia de aridez ou de área despovoada” (Filho, 2011, p. 87).
[3] Algumas obras dos pesquisadores podem ser encontradas em Stalker Lab (stalkerlab.net) e no Osservatorio Nomade (osservatorionomade.net). Acessos em 15/08/2020. O trabalho escrito de Careri também é bastante profícuo, principalmente, a partir das obras Walkscapes (Careri, 2002) e Caminhar e parar (Careri, 2017).
Figura 1. Membros da Comissão Exploradora do Planalto Central do Brasil, 1892. Fonte/acervo: CRULS, 1894. Foto: Héliog Dujardin.
A comissão foi formada por diferentes sujeitos (astrônomos, médicos higienistas, farmacêuticos, geólogos, botânicos, mecânicos) e as ferramentas levadas tratavam de temas de reconhecimento e levantamento de campo (círculo meridiano, teodolitos, sextantes, micrômetros, luneta astronômica, bússolas, aneroides etc.) e ainda instrumentos de medição e aferição meteorológicas, que auxiliavam a compreender o clima da região (Cruls, 1896b). No entanto, embora haja a diferença de campos disciplinares, tratava-se sobretudo de um grupo de militares e sanitaristas, evidenciando a inexistência de profissionais do campo de ciências sociais ou humanas, como antropólogos ou historiadores. Isso se destaca ao longo do texto, já que os exploradores não procuraram interlocutores propriamente nos locais, a não ser de modo bastante objetificado para alcançar informações específicas.
A viagem partiu do Rio Paranaíba, em Minas Gerais, com o destino à região dos pirineus, atual Pirenópolis (GO), alcançando o planalto central ao longo de oito meses. Assim, o relatório focou apresentar a construção de um quadrilátero aproximado, pois, na realidade, suas porções leste e oeste se aproveitam de dois rios existentes, respectivamente, o Preto e o Descoberto. As linhas retas ao norte e ao sul, portanto, abstraem-se da realidade e configuram uma espécie de delírio cartográfico, pela construção desejosa de um quadrilátero.
Em termos gerais, destacamos dois pontos na perspectiva de construção da expedição e da argumentação para as condições de habitabilidade no planalto central: a organização, marcada pela lógica militar, traduzida numa ideia de quadrícula “despovoada” (e, por que não, de apartamento para uma capital); e a cientificidade, marcada pelo estudo do clima. Ambos possuem a racialidade como objeto central. Notamos a todo momento passagens que visam evidenciar que o clima local se assemelharia ao europeu, já que a expedição foi estrategicamente realizada em uma época mais fria, servindo como boa justificativa aos europeus. Cabe enfatizar, primeiramente, o fato do relatório ter sido publicado bilingue, em português e francês; e que, àquela altura, os europeus eram motivados a vir para o Brasil com oferta de terras e oportunidades por parte do governo brasileiro, na continuação da política imigratória iniciada na independência em relação a Portugal (1822) e intensificada com o início da República (1891), em meio a um desejo de fundação de um novo povo brasileiro, com a vinda além de alemães e italianos, e fortalecida frente à difusão de ideias de eugenia em fins do século XIX.
A estratégia de apartar a nova capital do Brasil pela demarcação delirante das linhas aparece como mais uma manifestação de uma possível síntese de certo pensamento colonial-moderno, orientado por premissas de demarcar e indicar o que (e do que) se deve apartar, confirmando a histórica obstinação de diferenciar homem e natureza. Isto é muito notório na forma “caixa arquitetônica”, cujas linhas retas parecem alcançar tal qual um produto matemático que há tempos funcionou “como a invenção do homem que o equipara a Deus, porque ela concebe um mundo abstrato de formas e números, criado quase que do nada e que não encontra correspondência na realidade objetiva e concreta” (Oliveira, 2001, s/p).
O ato moderno de projetar, logo, é praticamente uma ode às linhas retas e deriva de um pensamento a criar limites e demarcar o início e fim dos lugares e das coisas, a limitar, ou seja, “desenhar um traço ao redor de algo para lhe dar uma forma bem definida e, portanto, evitar que esse algo, por assim dizer, se derrame sobre suas bordas em direção a um infinito onipotente” (Gagnebin, 2014, p. 35). Esta premissa seria a tarefa do pensamento ocidental visando estabelecer fronteiras, sendo elevado ao extremo na dominação sobre os outros a partir do Norte global.
No Distrito Federal, as linhas que configuram o quadrilátero são alcançadas oitenta anos depois pelo ato modernista brasileiro de Lucio Costa, a traçar uma cruz – um encontro das coordenadas – no solo do planalto central do Brasil e dela configurar a nova capital, com seu projeto vencedor do Concurso para o Plano Piloto de Brasília, 1956. As ideias de apartamento, limite e colonialidade são marcos da arquitetura moderna e ressoa fortemente no ato projetual de Lucio Costa, havendo praticamente uma relação de passagem ou de atualização do traço colonial para o moderno, desde a construção da trajetória do arquiteto até o modo como vai projetar Brasília.
A síntese colonial-moderno produzida por Lucio Costa tornou-se a principal referência historiográfica sobre a formação da arquitetura brasileira, sendo repetida e reafirmada em inúmeras análises posteriores. Deste modo, passou a representar mais do que uma narrativa sobre a arquitetura, tornando-se um dos mais poderosos instrumentos ideológicos do programa nacional-desenvolvimentista que se concretizou durante o regime protofascista de Vargas, e que seria adotado por todos outros governos subsequentes, tanto democráficos quanto ditatoriais, de JK ao golpe de 1964 (Tavares, 2022, p. 49).
As linhas retas permitem concretizar e efetivar o mapa cartográfico hegemônico – formado por linhas de meridianos, latitudes e longitudes – como modo de dominação de um território. Podemos inferir que as linhas retas da modernidade avançam a todas as etapas da invasão dos portugueses nas terras além-mar: as linhas do mapa que vão se atualizando ao passo do desenvolvimento das rotas; as linhas das capitanias; das bandeiras; daquelas à fundação das cidades coloniais. Atualizam-se com o gesto da Independência do Brasil (1822) e a demarcação de um país a ser urbanizado entre fins dos séculos XIX e XX, esquadrinhando-se nele, primeiramente, as ferrovias, e, depois, as rodovias, apartando, por fim, aqueles que não podem sobreviver dentro das grandes linhas, mas às suas margens. Nesse sentido, posicionamos que não pensamos em linhas esquadrinhadas enquanto metáforas, logo, elas não são operadas deliberadamente, mas o contrário: a política como feita por linhas retas, já que elas vêm sendo operadas do lado de dentro: do dominante; dos saberes e dos poderes hegemônicos; da língua e dos que falam; dos que esquadrinham; e dos que decidem sobre a vida de todos.
Práticas cartográficas imediatas no território
Pensando em modos de (des/re) mobilizar outras narrativas possíveis para essas linhas imaginárias que configuram o Distrito Federal, recuperamos uma reflexão de Sperling (2016) sobre práticas cartográficas: manifestações estéticas que se guiam por uma política do ato de cartografar a partir de outros meios. Em uma delas, categorizada pelo pesquisador como “trajetórias-narrativas”, onde há “o corpo do cartógrafo implicado e em deslocamento pelo espaço” (Sperling, 2016, p.87). Incluem-se nela os artistas-viajantes que surgiram no bojo de transformações urbanas ocidentais, por fluxos ou contra-fluxos, a partir de manifestações de fins do século XIX e ao longo do XX.
Sperling aponta personagens e práticas ligadas, em maior ou menor grau, a movimentos vanguardistas do início do século XX, seja em alusão ou em meio a eles, como os situacionistas, entre os anos 1950 e 1960, que surgem da fusão de movimentos de distintas tendências vanguardistas daquele contexto, como a Internacional Letrista, o Movimento Internacional Para Uma Bauhaus Imaginista e a Associação Psicogeográfica de Londres. Principalmente a partir das “derivas” e do desenvolvimento da “psicogeografia”, os situacionistas realizavam o caminhar a enfrentar poeticamente o ideário moderno das cidades, fruto do predomínio disciplinar do urbanismo.
Apontamos ainda artistas que propõem o deslocamento cartográfico em práticas e trajetórias, como Cildo Meireles e as obras relacionadas aos movimentos, em especial, Cordões – 30km de linhas estendidos (1969), que apresenta possibilidades de sínteses cartográficas, a partir da criação visual de um emaranhado de linhas justapostas a um mapa da estrada Rio-Santos.
Conhecido por suas investidas geoespaciais, em 1969, o artista caminhou por uma estrada de terra que viria a se tornar a Rio-Santos, à época, em fase de execução, em trecho do litoral sul do Rio de Janeiro. O amontoado de linhas o acompanhou e a operação em conjunto – novelo, mapa e maleta de viagem – configura outra dimensão cartográfica, sendo incorporado o movimento da viagem, pois, com o novelo desenrolado, a trajetória ganha protagonismo.
Já no cenário da Land Art, Richard Long surge como mais um artista que incorpora a narrativa de sua trajetória, a se utilizar do espaço físico e de linhas em diversas obras, como em Sahara Line (1988). Long apresenta o ato de caminhar como gestualidade de criação, em especial, no período das obras conceituais, em fins dos anos 1960. Como crítica direta à pintura, o ato de caminhar não possui uma expressão claramente “criadora”, e igualmente banal, por outro lado, a linha criada pela caminhada é a própria cartografia, ou seja, uma criação singular.
Também a partir da caminhada e de outras narrativas, o coletivo italiano Stalker,[3] liderado por Francesco Careri, desde meados dos anos 1990, vem penetrando vazios urbanos que evidenciam as transformações pelas quais as cidades passam em função da lógica do capital. A partir de caminhadas, em suas experiências teórico-práticas, o Stalker reinterpreta espaços fechados, como enclaves, em práticas de deriva (inspirada nos situacionistas), que os configuram como ilhas de um arquipélago. A ideia de deriva, logo, se torna mais evidente, já que a caminhada vira uma prática em meio à imensidão das cidades.
Por fim, lembramos ainda a articulação próxima a isso que Francis Alÿs, outro artista-viajante, realiza em suas intervenções artístico-geográficas, e políticas, como em The Green Line (2004), um videoarte em que caminha deixando escorrer uma lata de tinta verde aberta ao longo da fronteira de Jerusalém (também conhecida como “Linha Verde”), definida em mapa pelo então ministro da Defesa, Moshe Dayan, no final da guerra entre Israel e a Jordânia, em 1948.
Tais práticas cartográficas enfrentam lógicas dominantes e estratégicas a partir de confrontações, colocando outras posições por meio de narrativas críticas e em boa medida realizam outras operações, articulando-se, por meio da incorporação no território, outras formas de compreender tais locais.
O caminhar, o desequilibrar e o cortar as linhas
Os errantes são, então, aqueles que realizam errâncias urbanas, experiências urbanas específicas, a experiência errática das cidades. A experiência errática afirma-se como possibilidade de experiência urbana, uma possibilidade de crítica, resistência ou insurgência contra a ideia do empobrecimento, perda ou destruição da experiência a partir da modernidade (Jacques, 2012, p. 19).
A categoria dos caminhantes, ou “errantes urbanos”, constitui-se a partir de uma “experiência errática”, incidindo sobre uma “possibilidade de experiência urbana, uma possibilidade de crítica, resistência ou insurgência contra a ideia de empobrecimento, perda ou destruição da experiência a partir da modernidade” (Idem).
Nos últimos meses, temos iniciado pequenas caminhadas exploratórias tal qual “errantes” pelas linhas que demarcam o quadrilátero Cruls, buscando, em primeiro momento, entender como pode ter sido imaginado aquele território para depois atuarmos como uma proposta de intervenção urbana (Careri, 2002). Especulamos caminhos, paisagens, sensações e percepções e objetivamos construir peças audiovisuais de performance que tensionem o lugar da linha imaginada pela perspectiva aqui apresentada. Além disso, estudamos os mapas, produzimos alguns desenhos do mapa do quadrilátero e o articulamos com suas linhas que formam os lados por meio de barbantes, visando traçar poeticamente um caminho que se perde, se desequilibra e se corta no tempo.
[3] Algumas obras dos pesquisadores podem ser encontradas em Stalker Lab (stalkerlab.net) e no Osservatorio Nomade (osservatorionomade.net). Acessos em 15/08/2020. O trabalho escrito de Careri também é bastante profícuo, principalmente, a partir das obras Walkscapes (Careri, 2002) e Caminhar e parar (Careri, 2017).
A proposta é fazer isso ao longo do próximo ano, objetivando reativar percursos outros possíveis, em anotações próprias e estabelecendo paradas para possibilidades outras (Careri, 2017). Apostamos que o experimentado e incorporado (Jacques, 2008) em imediato em um determinado território acontece, sobretudo, por incontáveis e incessantes planos de vetores, em que neles diversas linhas se alinham, chocam-se, cruzam-se, multiplicam-se, reverberam-se, entremeiam-se, em intensas e contínuas disputas. Este vaivém se assemelha a um emaranhado por vezes possível, por outras, impossível, de se amarrar, costurar, atar e desatar pontos e nós.
Cada ato de desatar e reatar de nós é uma decomposição e composição de um mundo. Desequilibrar-se nas linhas também é desatar e reatar nós. Se nos apoiarmos em Deleuze e Guattari (2011), podemos assumir esse emaranhado como formado por linhas duras, maleáveis e de fuga. As primeiras seriam onde “tudo parece contável e previsto, o início e o fim de um segmento, bem como a passagem de um segmento a outro” (Idem, p.73), em que há o controle, a normatização e o enquadramento. As segundas, de maneira incontrolável, carregam "impulsos e rachaduras na imanência de um rizoma, ao invés dos grandes movimentos e dos grandes cortes determinados" (Ibidem, p.78). Apresentam, assim, fissuras instantâneas e são da natureza de uma micropolítica. As terceiras são do campo da “ruptura” e provocam mudanças bruscas, até imperceptíveis. São nelas, segundo os filósofos, em que há o ato de criação, pois são nelas que “se traça algo real, compõe-se um plano de consistência. Fugir, mas fugindo, procurar uma arma” (Deleuze; Parnet, 1998, p. 158).
Se cada modo de fazer-conhecer é um novo mundo, podemos assumir que ele será codificado e decodificado a todo instante e, consequente, haverá a feitura e o desmanche de outros mundos. Cada codificação pode ser construída a partir de uma narrativa desse novo mundo, entremeada a jogos de interesses, relações, estratégias, intenções.
Figura 2. Primeiras incursões na região do quadrilátero Cruls. Fonte/autoria: Gabriel T. Ramos.
Entretanto, é preciso considerar que essa codificação, antes de se tornar algo supostamente estático como um mapa, é realizada a partir de um processo, de linhas que compõem esse mapa, constituindo-se como um modo de fazer, que chamamos cartografia. Para os geógrafos, a cartografia – diferentemente do mapa, representação de um todo estático – é um desenho que acompanha e se faz ao mesmo tempo que os movimentos de transformação da paisagem. Paisagens psicossociais também são cartografáveis. A cartografia, nesse caso, acompanha e se faz ao mesmo tempo que o desmanchamento de certos mundos — sua perda de sentido — e a formação de outros mundos que se criam para expressar afetos contemporâneos, em relação aos quais os universos vigentes tornaram-se obsoletos (Rolnik, 1989).
Embora linhas sejam demarcadas estrategicamente, há fugas, podendo uma linha surgir como conexão, atravessamento, passagem, união, espalhamento, mas como movimento. Outros lugares podem se formar pelo movimento e não somente por aquilo que os delimitaria. Ou seja, a consistência do movimento pode eclodir um lugar. Para Ingold, o personagem "peregrino" é "exemplificado no mundo como uma linha de viagem" (Ingold, 2015, p. 221) e "o transporte", por sua vez, não se trata de "um desenvolvimento ao longo de um modo de vida quanto um carregamento através, de um local a outro, de pessoas e bens". No transporte, finaliza, o viajante não se move. É como a linha de Paul Klee, "a sua linha saiu para uma caminhada" (Idem, p. 222).
Assim, algumas questões se desenham: do que se trata o corte da linha? O corte teria a capacidade de romper as conexões? O corte é um processo de transformação da linha. O corte age como fissura, mas não como destruição. Cortar linhas não significa acabar com um processo, mas encaminhar um outro rumo àquela linha. A linha como um percurso. O percurso como um acoplamento de cortes. A linha cortada fez a linha como que quatro partes de aproximadamente 1200km de largura fossem rompidas. O que são 1200km de linha despedaçados? Assim, podemos chegar à questão: quanto uma prática cartográfica pode desmobilizar relações de poder?
Referências
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____. Caminhar e parar. (2017). Gustavo Gili.
Cruls, L. (1896b). Relatório Parcial da Comissão de Estudos do Planalto Central do Brasil. Typo-lith.
Deleuze, G.; Guattari, F. (2011). Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia (vol. 1). Editora 34.
Deleuze, G.; Parnet, C. (1998). Diálogos. Escuta.
Filho, F. D. A. Sobre a palavra “sertão”: origens, significados e usos no brasil (do ponto de vista da ciência geográfica). Fronteiras da Geografia. Ciência Geográfica, vol. XV - (1): janeiro/dezembro – 2011.
Gagnebin, J. M. (2014). Limiar: entre a vida e a morte. In: Gagnebin, J. M. Limiar, aura e rememoração: ensaios sobre Walter Benjamin. Editora 34.
Ingold, T. Estar vivo: ensaio sobre movimento, conhecimento e descrição. (2015). Vozes.
Jacques, P. Elogio aos errantes. (2012). EDUFBA.
____. Corpografias Urbanas. IV ENECULT – Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura, p. 1–13, 2008.
Kastrup, V.; Passos, E. Cartografar é traçar um plano comum. In: Fractal, Rev. Psicol., v. 25 – n. 2, pp. 263-280, maio/agosto, 2013.
Oliveira, L. B. (2001). A persistência da caixa. In: Vitruvius (Arquitextos), Disponível em: <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/01.009/918>.A cesso em 12/10/2022.
Porto-Gonçalves, C.; Quental, P. (2012). Colonialidade do poder e os desafios da integração regional na América Latina. In: Polis, 31, dezembro de 2012, p.1-28.
Rolnik, S. (1989). Cartografia Sentimental: transformações contemporâneas do desejo. Editora Estação Liberdade.
Sperling, D. M. (2016). Você (Não) Está Aqui: Convergências no Campo Ampliado das Práticas Cartográficas. Indisciplinar, 2(2), 77–92.
Tavares, P. Lucio Costa era racista? Notas sobre raça, colonialismo e a arquitetura moderna brasileira. (2022). n-1 edições.
Figura 3. Primeiras incursões na região do quadrilátero Cruls. Fonte/autoria: Gabriel T. Ramos.